Dezenas de milhões de brasileiros só têm acesso ao solo urbano e à moradia mediante processos e mecanismos informais – e, freqüentemente, ilegais. Favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, loteamentos clandestinos, cortiços, ocupações de áreas públicas nas encostas e beiras de rios – essas têm sido as principais formas de habitação produzidas pela maioria dos moradores das cidades. No Brasil, hoje, existem favelas em 98% das cidades com mais de 500 mil habitantes,em 80% das cidades que reúnem entre 100 mil e 500 mil habitantes e em 45% daquelas que têm entre 20 mil e 100 mil habitantes. Mais: 36% das cidades com menos de 20 mil habitantes têm loteamentos irregulares e 20% têm favelas!
O drama da multiplicação desses habitats precários vem à tona quando barracos desabam, em conseqüência de chuvas, e quando eclodem crises ambientais como o comprometimento de áreas de recarga de mananciais em função de “ocupação desordenada”. Na ausência desses episódios, no entanto, parece “natural” o apartheid que partiu nossas cidades em “centros” e “periferias”. “Centro” é o ambiente dotado de infra-estrutura completa, comércio, serviços e equipamentos culturais; e onde as residências têm escritura registrada em cartório. Já a “periferia” é o lugar feito exclusivamente de moradias de pobres, precárias, eternamente inacabadas e cujos habitantes raramente têm escrituras de propriedade.
Hoje as áreas “de mercado” são reguladas por um vasto sistema de normas, contratos e leis, que tem quase sempre como base a propriedade escriturada. É essa a beneficiária do crédito e a destinatária do “habite-se”. Para as maiorias, sobram os mercados informais e irregulares, em terras que a legislação urbanística e ambiental não disponibilizou para o mercado formal. Invisíveis para o planejamento e a legislação, as “periferias” e “favelas” do país estão, há décadas, sendo objetos de microinvestimentos em infra-estrutura. E suas populações vivem especialmente vulneráveis às políticas clientelistas. Por todas estas razões, que originam múltiplas e graves conseqüências, a informalidade da produção do habitat pelos grupos mais pobres precisa ser urgentemente enfrentada.
O governo federal, pela primeira vez, está formulando uma política de âmbito nacional que oriente e favoreça a regularização dos assentamentos já consolidados. A “Política Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável” está sendo formulada sob coordenação do Ministério das Cidades, em conjunto com os Ministérios da Justiça, do Meio Ambiente, a Secretaria de Patrimônio da União (Ministério do Planejamento) e a Defensoria Pública. E tem o sentido básico de apoiar, complementar e/ou suplementar a ação dos governos municipais, reservando à União uma intervenção mais direta apenas nos casos em que os assentamentos a regularizar estejam situados em terras de propriedade da União, especialmente quando enquadrados nos critérios da Medida Provisória no. 2.220, de 2001 (Concessão Especial de Uso para Fins de Moradia).
Essa política tem como pressupostos o reconhecimento do direito à moradia e à segurança da posse como direitos humanos fundamentais; a supremacia do Direito Público sobre o Direito Privado na regulação da ordem urbanística; a compreensão da natureza curativa dos programas de regularização; a necessidade de conciliação entre a regularização urbanística e ambiental com a regularização jurídica; e o reconhecimento da participação popular efetiva em todas as etapas dos processos de regularização. Estes pressupostos inspiram os objetivos gerais de apoiar os Municípios na implementação do Estatuto da Cidade, com ênfase na ampliação do acesso da população de menor renda à terra urbanizada e bem localizada; promover a integração de programas governamentais de regularização (combinando urbanização e legalização) com políticas includentes de planejamento urbano e estratégias democráticas de gestão urbana; promover o reconhecimento integrado dos direitos sociais e constitucionais de moradia e preservação ambiental, qualidade de vida humana e preservação de recursos naturais.
O “Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável”, baseado nessa política, está estruturado em torno de quatro estratégias – de apoio jurídico, financeiro, urbanístico e administrativo/institucional – cujo direcionamento comum é a promoção do diálogo, da sensibilização e da difusão de informações entre os diferentes atores envolvidos: operadores do Direito, entidades profissionais, comunidades organizadas, governos. Porque um programa deste tipo só pode ser implementado por intensa mobilização e participação de todos os atores envolvidos. As dificuldades e entraves imensos para que este tema seja finalmente enfrentado podem e devem servir a todos nós como um dos grandes desafios coletivos para a construção de cidades mais justas e belas.
Raquel Rolnik é secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Edésio Fernandes é diretor de Assuntos Fundiários do Ministério das Cidades.