Refugiados, refugos: A palidez da proteção internacional no seu sexagenário aniversário

refugiados030208.jpg1948, entre os quarenta e cinco votos favoráveis, oito abstenções e nenhuma manifestação em contrário, os países construtores da nova ordem do pós-guerra, reunidos na Assembléia Geral da ONU, orgulhavam-se por aclamar a Declaração Universal dos Direitos do Homem e por darem um passo significativo na proteção humanitária no campo internacional.

Certamente a conquista era grande depois de anos de instabilidade e conflitos no domínio geopolítico, e, sobretudo, depois de uma vasta experiência silenciosa na valorização do ser humano dentro da ?comunidade internacional?. A diplomacia secreta, imersa no liberalismo autárquico herdado do séc. XVIII, furtou-se aos gritos dos revolucionários franceses e propositadamente descuidou dos direitos econômicos, sociais e culturais.

Assim, a ausência ou a clausura nos Estados Soberanos de diálogo internacional sobre o zelo com o homem parecia encerrar-se naquela data, em especial, pelos inúmeros dispositivos que foram lentamente nos anos seguintes sendo costurados pelo adensamento normativo que o tema humano experimentou na política multilateral (a ver-se pelas Convenções e Declarações sobre a discriminação das raças, da mulher, da criança, dos idosos, dos deficientes, etc). Desde a criação da ONU, passando pelas declarações, às vezes com direito de sussurro em suas assembléias, o Brasil, reconhecidamente inaudível nos foros internacionais, contribuiu para a edificação institucional dos ?direitos humanos? e gradativamente se foi colocando no tabuleiro pluripolar do jogo entre as nações.

Contudo, a reflexão brasileira sobre o direito dos refugiados, sem embargo a recente recepção de palestinos fugindo da pressão israelita, não pode ser colocada nos mesmos termos. Embora tratemos com o ?devido respeito? os estrangeiros, nem sequer temos o cuidado com os nossos próprios cidadãos. O Brasil, que ainda busca superar suas fraquezas no âmbito interno, malgrado a causa atribuída freqüentemente aos países desenvolvidos quanto ao desrespeito de seus próprios cidadãos, está, certamente, muito avançado no campo da proteção internacional. Porém, não nos esqueçamos de nossos refugiados internos, de nossos refugiados pátrios, do paradoxo do termo, que apenas nos demonstra o nosso atraso peculiar na valorização do ser humano.

Apesar do nosso progressivo aparecimento, a ordem jurídica internacional ainda permaneceu por muitos anos numa frouxa vontade de efetividade do direito humanitário, conquanto o surgimento de cartas fundamentais, tal a que veio ?proteger? os refugiados. A norma internacional de 1951, ao obrigar os países a aceitarem todos aqueles que, por raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou por suas opiniões políticas, encontram-se fora do país de que tem a nacionalidade e não possam ou, em virtude daquele receio, não queiram pedir a protecção daquele país, entre outros, não pensou nos instrumentos adequados de integração.

Essa compulsoriedade do dispositivo dos refugiados deu um passo significativo, porém ilusório. Acreditou-se que desde então, e, sobretudo na Europa, após a estruturação da União Européia, os refugiados encontrariam os tão desejados princípios da Carta de 1948. Contudo, a realidade que se vivencia na Europa, em especial nos países que ainda são vistos como grandes ?desafios?, tais as nações dos leste europeu ou dos bálcãs, ainda é marcada pelo imenso desrespeito aos direitos dos refugiados.

A Grécia, apenas como exemplo e experiência pessoal, dada a sua subcondição econômica em relação ao resto da Europa Ocidental e dada a proximidade com os focos de conflitos balcânicos, traduz a imagem nítida da superficialidade e da vagueza da proteção àqueles que deixaram o seu país em busca de outras condições. Muito embora se obriguem desde 1981 com os termos da outrora EEC, e, logo, da Corte Européia de Direitos Humanos, o desrespeito à condição dos refugiados é factível a olhos abertos.

Inúmeros são os curdos, vindos em especial do Irã, da Armênia e do Azerbaijão, que perambulam nos portos de Pireus, Tessalônica, e, sobretudo, Patras, à espera de poderem se esconder nos caminhões, embarcando nos navios que cruzam o Adriático, e fugirem em direção à Itália, em busca de uma vida ?humana?. A despeito da proteção e do asilo jurídico que receberam da República Grega, a experiência do dia-a-dia mostra que o modo como são tratados pela população pátria está longe dos anseios humanitários e de uma proteção jurídica internacional.

Dizem os gregos, em particular os mais antigos e regionalistas, que aos refugiados lhes faltam as boas maneiras que os herdeiros da Grécia Antiga têm, e que a criminalidade está diretamente relacionada com a ?inundação? de curdos nas cidades portuárias. Dizem os jovens: ?não gostamos do seu modo de vida, têm cheiro, traços sujos e ocupam as praças e bancos à beira-mar, deixando amedrontadas as nossas crianças?; ?ultimamente, têm ousado subir a cidade e caminhar no centro?. Dentre inúmeras más referências que fazem aos refugiados, os gregos, embora não se trate de condição exclusiva deles, já que a maioria dos países europeus pensa da mesma maneira, continuam a considerá-los estrangeiros, muito longe do que a declaração dos refugiados assim estabelece. O que lhes resta, como ?arma de reação?, segundo eles mesmos, é jogar pedras e cuspir, já que o medo de doenças contagiosas parece ser unânime entre os gregos.

A discriminação não é visível; está sob as escondeduras dos atos privados, seja na mudança de hábito dos nacionais, para não correrem o ?risco? de passarem próximos aos refugiados, seja na divulgação de boatos de que a saída para outros países é inviável pelos seus portos. Absconsos, correm à noite em busca de um sonho de vida, após passarem o dia olhando a esperança das águas mediterrânicas, sob o escárnio constante dos policiais que lhe jogam as motocicletas em cima. A velha contradição entre validade e eficácia das normas, cuja jusfilosofia cansou de denunciar, sobremaneira precisa ser refletida. Então, o que é a condição jurídica do refugiado? O que difere 2008 de 1948? O que efetivamente se construiu no plano internacional nesses 60 anos que tornou a realidade distinta dos refugiados?

Assim, parece certo que a porção mais difícil dessa construção protetora do refugiado parece ser a materialização do arcabouço jurídico criado. Afinal, se existe um documento de 1951 que determina a aceitação do refugiado, porque tem ele que ficar espremido contra o gradil de um porto a olhar o seu futuro ir e vir ao sabor das marés?

Essa materialização depende, evidentemente, dos esforços dos países que assinaram a norma de 51, especialmente através da criação de instrumentos próprios à solução do problema: mais do que simplesmente receber o refugiado é essencial permitir-lhes a inserção social com a concessão de emprego, educação, saúde e um mínimo de direitos políticos (no Brasil, a lei 9474/97 pretende cumprir esse papel). Todavia, isso tudo é complicado: enquanto os países em desenvolvimento já têm dificuldades em dar essas garantias mínimas aos seus próprios cidadãos, os países desenvolvidos alegam já terem problemas demais com os imigrantes ilegais.

Ainda existe a questão da opinião pública. A xenofobia da população grega se repete rotineiramente em muitos países, já que o estrangeiro bem tratado costuma ser apenas o turista que aquece a economia, quando muito. O estrangeiro que chega de mãos vazias e pede abrigo não desperta o mesmo interesse e, pelo contrário, acaba sendo vítima do preconceito e apontado como a causa maior dos males da história recente de um país. Grande parte da população autóctone costuma ser contrária a uma divisão da riqueza nacional com o ?outro? e ignora por completo o que se escreveu nas convenções internacionais de auxílio ao refugiado.

Afinal, se o imigrante já é comumente tratado de forma diferenciada, o que imaginar do refugiado? A história demonstra que o imigrante é, tradicionalmente, o primeiro a ser reprimido e o último a ter acesso ao resultado da arrecadação de tributos. O exemplo grego parece deixar claro que essa parte da população é tratada sob o estigma daquele que não se emenda e que só serve a criar problemas facilmente apontado como o criminoso e o desajustado.

Uma conseqüência que decorre dessa realidade parece ser a de que pouco resta ao estrangeiro que não dedicar-se aos seus hábitos tradicionais, à sua língua e ao seu grupo familiar. Os efeitos cedo se evidenciam: comunidades fechadas que preferem estudar em escolas ?étnicas?, negociar com seus patrícios e falar a língua de seus ancestrais, o que provoca, por sua vez, a incapacidade de produção da paz social pelo simples fato de que os grupos não se entendem e não se relacionam.

A experiência da sociedade parisiense é emblemática: embora a multitude racial das ruas da Cidade Luz possa impressionar o turista ocasional, grupos étnicos diferentes vivem em compartimentos estanques e os africanos do Boulevard de Strasbourg pouco se relacionam com os árabes da Rue Saint-Denis, mesmo vivendo a poucas quadras uns dos outros. O banlieue de Paris, onde se concentra a maioria dos imigrantes, não tem os mesmos serviços públicos e nem a mesma segurança que o centreville. Daí não ser estranho que de tempos em tempos a massa se levante e a sociedade se choque com o resultado: os conflitos, as prisões, os feridos e os carros em chamas.

Mudar essa tendência parece ser uma chave essencial para que se permita uma efetiva solução do problema. A integração do refugiado depende necessariamente de uma conscientização social no sentido de apontar claramente os benefícios de uma sociedade multicultural, miscigenada e aberta. Do contrário, os originários do Magreb continuarão sendo estrangeiros em Paris enquanto aos curdos só restará o direito de olhar o esmeraldino mar grego. Hoje, ambos ainda aguardam os efeitos de 60 anos de história…

Aproveitando o mundo grego, Platão mesmo dizia que a idade, por si só, não traz sabedoria se a experiência não for vivida com reflexão e prudência sempre constantes. Se Aristóteles acreditava que uma vez mal formado, dificilmente se mudaria, prefiramos acreditar em Platão, que nos versos de Sólon constantemente dizia: envelheço aprendendo sempre muitas coisas.

2008, entre os 191 países que integram as Nações Unidas e os 27 que costuram a União Européia, infelizmente, apenas deixa perceber que o que existe é a imensa gracilidade do discurso protecionista e a retórica cândida do seu aniversário. Como bem dissera Marti Koskeniemmi, atual membro da Internationa Law commission das Nações Unidas: ?diante dos imensos esforços da ONU no seu papel internacional, resta-nos apenas o inevitável senso de insatisfação?.

Os refugiados são refugos, e seus filhos serão eternos forasteiros, que embora não ?possam ser? juridicamente considerados peregrinos e apátridas, mas ?refugiados?, dificilmente se livrarão da alcunha que o mundo jurídico moderno lhes etiquetou. É preciso pensar nisso tudo e jamais se acomodar com a pouca proteção que existe, e, sobretudo, também, não continuar a ter a mesma constatação que outrora tivera em 1954 o Secretario-Geral da ONU Dag Hammarskjold. : ?The united nations was not created in order to bring us heaven, but in order to leave us from hell.? (As nações unidas não foram criadas com o objetivo de nos trazer o céu, mas de nos livrar do inferno). Isso se autoexplicava há 60 anos atrás, mas não hoje mais…

Guilherme Roman Borges é doutorando e mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direito na USP; mestre em Sociologia do Direito e bacharel na UFPR, bolsista doutoral na Faculdade de Filosofia da Universidade de Patras-Grécia; professor de Economia e Política Internacional, e, membro do grupo de estudos de Direitos Humanos na UnicenP.

Rui Carlo Dissenha é doutorando em Direitos Humanos na USP; mestre em Direito Penal e bacharel na UFPR; Diplôme Supérieur de l?Université de Paris II Panthéon-Assas, France; LLM in Public International Law with International Criminal Law Specialization at Leiden University, The Netherlands; professor de Direito Penal e coordenador do grupo de estudos de Direitos Humanos na UnicenP.

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