O interrogatório à distância foi aprovado pelo Senado Federal no primeiro semestre deste ano. Resta agora a apreciação da Câmara dos Deputados. Não é tal interrogatório algo maléfico em si, mas é evidente que deve ser dotado de uma série de garantias, sob pena de total desrespeito à Constituição. Jamais pode ser realizado sem a presença do defensor e do Ministério Público, permitindo-se, ademais, a ambos, a participação contraditória. O projeto aprovado prevê o interrogatório on line sem a presença de defensor. Isso é aburdo porque não há nenhuma garantia de que o acusado terá liberdade para dizer o que deseja.
O impedimento às partes de formular quesitos ou de indicar assistente técnico, no momento da prova pericial, implica evidente limitação do direito à prova, que se insere na garantia constitucional do contraditório.
A manutenção da prisão para apelar nos casos de sentença em primeiro grau ou de pronúncia conflita com a Constituição assim como com a atual jurisprudência, que já evoluiu para considerá-las modalidades de prisão cautelar, o que implica a necessidade de o juiz fundamentar, sempre, a real necessidade da prisão.
Até mesmo os embargos infringentes de ofício foram proscritos. A proposta é a seguinte: quando o Tribunal julga uma apelação e o julgamento (contra o réu) não é unânime, automaticamente o caso deve ser colocado em pauta num colegiado maior para reexame da decisão. A Comissão Mista não só eliminou esse avanço, como pretende criar (equivocadamente) os embargos infringentes pro societate (em favor da acusação). Isso só se justifica em casos excepcionais (extinção da punibilidade com base em certidão de óbito falsa, por exemplo), nunca como regra geral do ordenamento processual, que é regido pelo princípio do favor rei (em favor do réu).
A supressão da possibilidade de absolvição sumária no momento do juízo de admissibilidade da ação penal também constitui uma nefasta iniciativa da Comissão Mista, que desatende princípios básicos como dignidade, celeridade da Justiça etc.
Na atualidade, como sabemos, quando o juiz toma conhecimento do auto de prisão em flagrante, atua, em geral, burocraticamente (“aguarde-se a vinda do inquérito policial”). É preciso modificar essa praxe, para exigir do juiz uma concreta manifestação sobre a necessidade da prisão, convertendo-a, quando o caso, em prisão preventiva. Contra tudo isso posicionou-se a Comissão Mista.
Há mais: criou-se (estarrecedoramente) hipótese de prisão preventiva compulsória. No tempo do regime militar (apesar de todas as restrições aos direitos fundamentais) acabou-se com a prisão cautelar obrigatória. Agora, com o advento da democracia, sugerem-se retrocessos que nem sequer os militares (apesar do menosprezo às garantias constitucionais) aceitavam.
Todos devemos estar atentos e combater as aberrações jurídicas já aprovadas pelo Senado Federal. Cuida-se de legislação não só contraproducente, senão também até estimuladora da criminalidade. O efeito criminógeno das leis penais já foi denunciado por Ferri no século XIX e até hoje não foi aprendido.
Incontáveis associações (Juízes para a Democracia, dentre outras) e juristas (Ada Pellegrini Grinover, por exemplo) estão liderando um forte movimento de oposição às iniqüidades já aprovadas. Com justa razão. As conquistas democráticas que alcançamos depois de muitos anos de luta não podem ser empurradas ao lixo por decisões precipitadas e desequilibradas.
A pretensão de transferir poderes dos juízes para delegados de polícia e promotores (prisão decretada por eles), a criação de novos tipos penais inócuos, a sugestão de criminalizar o seqüestro em veículos de transporte coletivo (como se isso já não fosse passível de enquadramento na legislação atual) são providencias que devem merecer imediata refutação. A inconstitucionalidade e inutilidade prática é manifesta.
A pena do delito de seqüestro, de outro lado, não pode ser maior que a do homicídio (porque isso conduziria o criminoso a matar a vítima para ter pena menor). Aliás, a cada momento em que o legislador altera os parâmetros da pena, mais desproporcionalidade provoca.
Precisamos nos conscientizar, de uma vez por todas, que o mais grave problema causado pelo criminalidade no nosso país não consiste tanto na falta ou no defeito das leis, senão no não cumprimento das que existem. Contamos com uma das legislações mais duras de toda América Latina. Mas seu nível de aplicação prática e efetiva é baixíssimo. Nosso combate, portanto, deve direcionar-se contra a impunidade, não em favor da elaboração precipatada e eleitoreira de novas leis penais. Muito mais importante que criar uma lei penal nova é fazer cumprir as já existentes.
Luiz Flávio Gomes
(falecom@luizflaviogomes.com.br). Doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, diretor-presidente do IELF – Instituto de Ensino Jurídico (www.ielf.com.br) e autor do curso de DP pela internet (www.iusnet.com.br)