Reforma política: voto distrital misto: visão jurídica

A Constituição de 1988 garantiu o sufrágio universal, pelo voto direto e secreto. Determinou, no entanto, o voto proporcional para a Câmara dos Deputados, já adotado desde a Constituição de 1946 (art. 45). O sistema está regulamentado pelos artigos 105/109 do Código Eleitoral (Lei 4.737/65, recepcionado pela Carta de 1988). O tema é tratado como ?representação proporcional?, e se baseia no princípio do quociente eleitoral dos partidos políticos. Muito embora seja ?a conseqüência de uma justiça na representação política ?(Pinto Ferreira, Código Eleitoral, pág. 139) e necessidade da democracia de massas (no conceito de Bobbio), muitos agora pensam que chegou o momento de se alterar o sistema. Na verdade, já anteriormente se previa a hipótese do voto distrital, mas a reforma constitucional de 8/05/1985 suprimiu esta possibilidade (Antônio Roque Citadini, Código Eleitoral Anotado, pág. 156). O sistema do voto proporcional também é o fixado para a eleição de vereadores (Código Eleitoral, art. 106 e seus parágrafos).

Desconhecimento popular

Há grande desconhecimento a respeito em que consiste e como funciona na prática o sistema do voto distrital misto. Na verdade, é um misto de voto distrital puro, com o sistema de representação proporcional. A seguir, uma breve descrição do que poderia ser adotado.

No sistema do distrital misto, o legislativo é composto, metade por eleitos por votação majoritária obtida em distritos eleitorais (que seriam criados por lei) e a outra metade por candidatos ?gerais?, que recebem votação em todo o território do estado, inclusive do próprio distrito. Aqui há, portanto, semelhança com o atual voto de legenda, ou de representação proporcional porquanto o candidato é indicado pelo partido; não há candidaturas avulsas. Neste sistema, o eleitor dispõe de dois votos; um para o candidato distrital, outro para um candidato ?geral? (ou de toda coletividade).

O voto distrital misto pode ser aplicado tanto para eleições para deputados federais ? representantes na Câmara de um Estado da federação ? como estaduais, e inclusive para o legislativo municipal. O sistema não se aplica para a eleição de senadores, porque este pleito é majoritário (Constituição Federal, art. 46).

Para tanto, o território será dividido em distritos eleitorais, que elegerão a metade dos assentos à casa legislativa. Cada partido apresenta um seu candidato pelo distrito. Esta eleição é majoritária. Vence o que obteve mais votos. As demais cadeiras (50%) serão preenchidas pelo sistema proporcional, nos mesmos termos hoje vigentes (voto de legenda e quociente partidário). Para esta metade, tanto poderia ser adotada lista partidária fechada, como a ?aberta?, isto é, os mais votados em cada legenda. Estes representantes consideram-se indispensáveis para qualquer casa legislativa, por sua experiência passada, por sua projeção, relevo de suas posições, liderança, etc. Evita-se assim a ?paroquialização? da política ou ?provincianismo? dos representantes eleitos. Têm-se então uma representação local, sem prejuízo de nomes respeitados, conhecidos, ou experientes que integrarão o mesmo corpo legislativo.

Um exemplo esclarece melhor. Tome-se Curitiba e a Câmara de vereadores. Supondo trinta o número de assentos no legislativo municipal, o município (ou uma zona eleitoral) seria dividido em 15 distritos. Cada um deles elegeria, por votação majoritária, um vereador ?distrital?, indicado por um dos partidos políticos. Os outros 15 seriam aqueles também lançados pelos partidos, que mais tivessem obtido votos em toda a cidade (ou zona eleitoral). Assim, teríamos ao mesmo tempo vereadores ?distritais? e ?gerais?, os quais representariam tanto os interesses ?paroquiais? (distritais), como os globais da comunidade.

Valendo-se de nomes já saudosos, apenas para exemplificar, poderíamos citar os anteriores vereadores João Stival ou Toaldo Túlio (eleitos só com os votos do bairro de Santa Felicidade) e Iberê de Matos ou Omar Sabbag, anteriores prefeitos, como candidatos ?gerais?, os quais, por sua projeção e experiência, sempre poderiam ser candidatos à Câmara Municipal.

Vantagens do sistema

A vantagem deste sistema é evidente. O candidato eleito pelo distrito conheceria de perto as necessidades locais e as reivindicações dos eleitores. Assim, poderia defendê-las com mais propriedade na Câmara Municipal. Os candidatos manteriam escritórios ?políticos? no distrito pelo qual foram eleitos e que representam, onde ouviriam seus munícipes, prestariam contas de sua gestão e estariam sujeitos ao controle dos eleitores, independente do partido ao qual pertençam. A fiscalização de sua atividade seria bastante próxima e efetiva. Seria, pois, o que a Constituição determina: ?legítimo representante do povo?.

O voto distrital misto é o item mais importante para uma real reforma política no Brasil. Mas raramente é mencionado pelos próprios políticos os quais, segundo parece, não têm interesse pessoal em sua adoção. A própria mídia, quando relaciona os itens pretendidos para a reforma, menciona cláusula de desempenho, votação em lista fechada, federações partidárias, coligações nas eleições proporcionais, fidelidade partidária, financiamento público, etc, conforme os projetos de reforma em curso no Congresso. Mas nada a respeito da adoção do voto distrital misto (O Globo, 23/06/05, pág. 11). Ao que tudo indica, querem a permanência do sistema atual, do voto proporcional.

É oportuno saber-se o que dizem políticos, comentaristas e juristas.

Conceituados articulistas explicam que se trata da sobrevivência dos próprios políticos. ?O Congresso, no entanto, costuma cuidar apenas da sobrevivência de quem já o integra?; e … ?Os nossos deputados elegeram-se pelo voto proporcional; construíram suas respectivas máquinas eleitorais com base nesse sistema. Se o sistema mudar eles correm o risco de não se reelegerem ? (Fábio Campana, Gazeta do Povo, edições de 10/06 e 17/07/2005). Em igual sentido, comentários de Tereza Cruvinel (O Globo, 23/06/05). Também Alex Gutenberg une-se à crítica (Gazeta do Povo, 24/07/05): …porque esse parlamento vai legislar em causa própria, mudar as leis eleitorais, votar um novo sistema que irá permitir que eles se perpetuem no poder?.

Sérgio Braga, professor de Ciência Política da UFPR: ?Na verdade, sob o disfarce reforma política, o que tais parlamentares pretendem implementar são propostas que visam aumentar ainda mais as brechas existentes no sistema político para práticas corruptoras e fisiológicas, reduzindo a ?reforma? a medidas eleitorais de ocasião? (O Estado do Paraná, 3/07/05).

Hoje entende-se que uma reforma política é indispensável, para sanar as vexatórias irregularidades que recentemente foram trazidas ao conhecimento do povo, objeto de apuração pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, onde os próprios investigados ficam dispensados de dizer a verdade. Temas da pretendida reforma estão em todos os jornais, pela pena de comentaristas bem informados (Mônica Waldvogel, O Estado do Paraná, 25/07/05) .

Problemas remontam à Constituição de 1988

Pessoas experientes remontam o problema à elaboração da Constituição de 1988: ?já na elaboração da Constituição de 1988 faltou vontade política ao Congresso para promover a modernização dos partidos políticos. O atual sistema prevê mecanismos que acabam afastando o eleitor do processo de fiscalização ? (Armando Sobreiro Neto, autor de ?Direito Eleitoral: Teoria e Prática?, Gazeta do Povo, 20/06/05). Dirigentes empresariais de peso também verberam: ?A verdade é que a Constituição de 1988 criou ?um elefante branco? na política brasileira (Fecomércio, n.º 51, junho/05, editorial pelo presidente Darci Piana).

Políticos respeitáveis explicam o porque da manutenção do sistema atual: ?Participei de todas as comissões que discutiram a reforma política e chego à conclusão de que os políticos não vão ?mexer em time que está ganhando?. Se eles estão se elegendo, porque mudar as regras?? (deputado Affonso Camargo, Gazeta do Povo, 05/06/05). ?Para coibir esta anomalia, impõe-se o voto distrital misto, metade da representação eleita pelo distrito, e outra em lista partidária, com o eleitor tendo dois votos para o legislativo? (Léo de Almeida Neves, Gazeta do Povo, 19/06/05).

A oposição ao voto distrital misto parte não só dos políticos favorecidos pelo voto proporcional, como também – e especialmente – pela restrição que lhe é feita pela própria mídia (especialmente TV), pelas entidades de classe (sindicatos, associações de classe e semelhantes) e por algumas instituições religiosas ? todos eles perderiam importância na formação da opinião pública ou de filiados (e não mais elegeriam suas ?bancadas?).

A opinião de conhecedores do Direito Eleitoral e da Justiça Eleitoral aponta para esse caminho do voto distrital misto. A corrente é liderada pelo próprio ministro Carlos Velloso, atual presidente do TSE: ?A reforma política é urgentíssima. É preciso ainda pensarmos na reforma do sistema do voto. Hoje temos apenas o Brasil e a Finlândia praticando o sistema proporcional. É hora de pensarmos no voto distrital misto ? (Gazeta do Povo, 27/06/05).

Um dos precursores da idéia do voto distrital misto é Sergio Maranhão Ritzmann. Em artigo publicado no Paraná Eleitoral n.º 20, pág. 25, diz ele que as vantagens do voto distrital consistem em: ?a) a proximidade entre eleitor e candidato, propiciando, em última análise, uma intensa participação política do candidato; b) maiores chances de melhor fiscalização dos trabalhos desenvolvidos pelo eleitos?.

Formadores de opinião também apóiam o voto distrital: Carlos Alberto Di Franco, professor de Ética da Comunicação (O Estado de São Paulo, 18/07/05): ?O voto distrital, que quebra o distanciamento entre eleitos e eleitores, é essencial?; ?Certa vez, um cidadão do Canadá, onde o voto é distrital, me disse: Lá temos o nosso deputado, da mesma forma que o nosso médico, o nosso advogado, o nosso dentista e por aí afora?; ?O mercado de deputados, também é falho porque eles não têm compromisso com a marca que ostentam? (Roberto Macedo, O Estado de São Paulo, 16/05/05). Evidente isso não ocorre em nosso país, onde grande parte dos eleitores nem se lembra em quem votou na última eleição…

Pesquisa aponta vantagens

Em pesquisa efetuada pelos estudantes de Pós-graduação em Sociologia Política da UFPR (Sérgio Braga e Priscilla Belache), publicada na Revista Paraná Eleitoral n.º 53/54, jul/dez-04 ) foram muito esclarecedoras as razões das respostas favoráveis à adoção do sistema eleitoral misto: gera-se um controle próximo do representante pelo eleitor; maior comprometimento do eleito com sua base eleitoral; cresce a representatividade e transparência do processo; reduz o excesso de candidatos, tornando mais claras as opções do eleitor. As opiniões desfavoráveis baseiam-se no desconhecimento: ?há pouca informação disponível sobre este assunto, então é melhor deixar que o sistema atual funcione por um tempo antes de modificá-lo? (pág. 24).

Em texto de nossa autoria, publicado na Revista Paraná Eleitoral n.º 35, sob título ?Compra de Votos?, comentando o art. 41-A da Lei 9.504/97, finalizamos dizendo… ?O próximo passo moralizador será a adoção do voto distrital misto, que o autor espera seja aprovado pelo Congresso com a brevidade que se impõe.?

Eleitores já adotam o voto distrital misto

A análise do resultado das eleições proporcionais de 2002 no Paraná, mostra o que já havíamos alertado alhures: os eleitores já mostraram efetiva preferência pelo voto distrital misto, ao votarem nos candidatos locais, ou seja, naqueles que representam a região onde são radicados e onde são conhecidos. Examinados os resultados de áreas importantes do estado (v.g. Cascavel, Foz do Iguaçu, Guarapuava, Jacarezinho, Londrina, Maringá, Paranavaí, Pato Branco, Ponta Grossa, Umuarama, União da Vitória), verifica-se que, tanto para deputados federais, como para deputados estaduais, cerca de 55 a 60% dos votos foram outorgados aos candidatos locais, líderes políticos da própria região, enquanto os restantes foram espalhados entre todos os outros candidatos, mas com clara prevalência dos nomes mais conhecidos ou respeitados.

Mudança da legislação vigente

A adoção do voto distrital não apresentaria dificuldades maiores. É claro que deveria ser alterado, por emenda constitucional, o art. 45 da Constituição Federal, para substituir a expressão ?voto proporcional?, por voto distrital misto. Mas como desde 1988 até agora o Congresso já votou 45 emendas ? ou seja, quase três por ano ! ? por aí não se antevêem maiores dificuldades.

Seria também editada uma nova lei, que dispusesse sobre o sistema, aplicável à Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas e Câmara de Vereadores. Os artigos 106 a 113 do Código Eleitoral deveriam ser revogados.

Em conclusão: o sistema do voto distrital misto é o que atualmente e para o futuro melhor atenderá ao princípio constitucional da moralidade, imposto aos Poderes da República e à administração pública (art. 37).

Carlos Fernando Correa de Castro é advogado, ex-juiz do TRE/PRn membro do Instituto dos Advogados Brasileiros, ex-presidente do Instituto dos Advogados do Paraná.

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