Em dezembro do ano passado (12/12/2004) publicamos neste jornal um artigo efetuando um balanço das eleições municipais e onde, contrariando as avaliações excessivamente otimistas e quase eufóricas de alguns analistas sobre o desempenho da democracia brasileira, advertíamos sobre os desequilíbrios estruturais que continuavam a se manifestar no sistema político nacional, sublinhando ainda a necessidade urgente de uma reforma política para promover uma correção de rota de nossa democracia.
Os eventos políticos ocorridos desde então, com as significativas derrotas governamentais na Câmara dos Deputados, para os setores mais arcaicos da política brasileira, e a dificuldade do governo Lula em compor uma nova coalizão de governo, só fizeram agravar a manifestação de tais desajustes, (re)colocando na ordem do dia o debate sobre a reforma política, vista por muitos como um vigoroso antídoto contra as formas promíscuas de negociação política entre o Executivo e o Legislativo, um dos principais (não o único, que fique bem claro) focos de corrupção e fisiologismo na vida política nacional.
Entretanto, a relação entre reforma política e controle da corrupção não é tão simples como querem fazer crer alguns de seus propositores, e uma robusta evidência disso está no fato de que muitos parlamentares notoriamente fisiológicos, que fazem do teatro do combate à corrupção, sua bandeira de luta, serem os principais opositores de uma reforma política séria, que atinja verdadeiramente os fundamentos da corrupção do clientelismo e do fisiologismo, tão difundidos na política brasileira.
Na verdade, sob o disfarce de reforma política, o que tais parlamentares pretendem implementar são propostas que visam a aumentar ainda mais as brechas existentes no sistema político para práticas corruptoras e fisiológicas, reduzindo a ?reforma? a medidas eleitorais de ocasião, tais como o fim da verticalização das coligações e uma fidelidade partidária que signifique na prática um maior controle das cúpulas sobre as bases dos partidos, esvaziando ainda mais estas organizações de suas funções precípuas de debate público sobre programas e estratégias de governo, bem como de servir como um canal organizado de fiscalização da sociedade sobre o Estado e a esfera pública, como ocorre na maior parte dos países civilizados e de democracia consolidada.
Por isso, é preciso ter muita clareza sobre as formas pelas quais uma reforma política pode efetivamente servir como um instrumento de modernização de nosso sistema político, para que a implementação de tais propostas de reforma não impliquem num retrocesso ainda maior que, ao invés de coibir, crie novos incentivos institucionais para práticas fisiológicas e corruptoras tão comuns em nossa vida política.
A nosso ver, são os seguintes os mais importantes incentivos institucionais à corrupção e ao fisiologismo existentes no sistema político brasileiro e que devem ser objeto de modificações: (i) O extremo personalismo e alto custo das campanhas eleitorais (motivados pelo excesso de postulantes aos cargos eletivos, pela propaganda eleitoral centrada no candidato e não no partido e nas propostas, e pela adoção do modelo de lista aberta na eleição proporcional); (ii) o sistema de governo presidencialista com excessiva fragmentação do sistema partidário e ausência de obstáculos rígidos à migração partidária (o que implica na construção de uma base parlamentar pelo presidente da República através do recurso a grandes coalizões fisiológicas, onde obtém-se a governabilidade às custas da fragilização dos partidos políticos, e da negociação pontual e individualizada com cada parlamentar); (iii) o fraco papel dos órgãos legislativos na formulação e fiscalização das políticas públicas, efeito, por sua vez, da inexistência de consistentes coalizões programáticas de governo e de partidos fortemente institucionalizados e enraizados no eleitorado.
Dentre as medidas que podem incidir de forma significativa sobre esses problemas estruturais, estão o financiamento público de campanhas, a federação de partidos e a adoção de listas fechadas (mesmo que parciais), sendo que muitas destas medidas, aliás, já estão contidas no Projeto de Lei 2.679/2003, que resultou da Comissão de Reforma Política sob a relatoria do deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO), e que ora encontra-se em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados.
Se adotadas, tais propostas poderão produzir importantes mudanças (para melhor) no sistema político brasileiro, tais como o fortalecimento das convenções partidárias (com mais espaço para a manifestação das bases, e não apenas para os caciques dos partidos legitimarem suas chapas eleitorais); a despersonalização das campanhas eleitorais, com a conseqüente diminuição da influência do marketing político e dos custos das campanhas, eliminando um dos principais focos de corrupção da política brasileira; e, por fim mas não menos importante, a formação de coalizões e coligações partidárias construídas em torno de temas e da negociação programática entre lideranças representativas das bases partidárias, e não na base do troca-troca fisiológico tão característico da política brasileira, onde a infinidade de cargos de confiança nas mãos do Executivo é utilizada como moeda corrente para assegurar a obediência de parlamentares potencialmente recalcitrantes.
De tudo isso, pode-se esperar um maior controle da sociedade organizada sobre o Estado e uma forma de fazer política mais transparente aos olhos do eleitorado, com a conseqüente diminuição dos incentivos à corrupção, ao fisiologismo e ao clientelismo tão difundidos na política nacional. Entretanto, talvez seja justamente na simplicidade e eficácia de tais medidas para o aperfeiçoamento de nossa vida política que resida seu calcanhar-de-aquiles. Afinal, teriam os atuais deputados e senadores, majoritários no Congresso, um real interesse em organizar campanhas mais baratas, um processo eleitoral mais transparente onde a vontade do eleitor prevaleça sobre os conchavos das cúpulas partidárias, e na simplificação dos processos de constituição das equipes governamentais, com os políticos tendo menos prebendas e cargos para distribuir entre sua clientela?
Sérgio Braga é professor de Ciência Política do Departamento de Ciências Sociais da UFPR.