Às considerações que fizemos no artigo anterior sobre a Lei 11.106/2005 devem ser agregadas as seguintes:
7. Revogação da causa extintiva da punibilidade consistente no casamento do agente com a vítima, nos crimes sexuais (CP, art. 107, VII): a legislação brasileira era uma das últimas, senão a última do seu entorno cultural, que ainda previa, em relação ao casamento com a vítima, nos crimes sexuais, força extintiva da punibilidade. Cuidava-se de regra que exprimia a cultura dos anos 40 (do século passado): mais vale o casamento (para a donzela "desonrada") que a tutela penal da liberdade sexual. Muitas vezes o casamento era "comprado" (leia-se: "era de fachada"). Todos os resquícios dessa sociedade "machista", que desconsiderava a dignidade das mulheres, devem mesmo ser abolidos do nosso Direito penal. O casamento do agente com a vítima, nos crimes sexuais, doravante, já não extingue a punibilidade por si só. Mas convém recordar que a regra nesses crimes é a ação penal privada. E nesse caso o casamento representa perdão do ofendido, que também é causa extintiva da punibilidade. Em suma, nos crimes de ação penal privada o casamento ainda terá relevantes efeitos penais.
8. Revogação da causa extintiva da punibilidade consistente no casamento da vítima com terceira pessoa (CP, art. 107, VIII): nos crimes sexuais não violentos, o casamento da vítima com terceiro também extinguia a punibilidade do agente (caso a vítima não requeresse o prosseguimento do inquérito ou da ação penal em sessenta dias). Essa causa extintiva da punibilidade vinha, nos últimos tempos, sendo objeto de horrorosas "transações". Noticiou-se o caso de um prefeito que teria mantido relação sexual com várias adolescentes e depois teria "comprado" o casamento delas com vários rapazes. Com isso acabou conquistando a impunidade. Como se vê, já era mesmo tempo de se revogar o inciso VIII do art. 107 do CP. Tratando-se de lei penal nova desfavorável ao réu, claro que não pode retroagir, isto é, a crimes ocorridos antes da nova lei (antes de 29.03.2005) ainda é possível incidir tanto a causa extintiva do inciso VIII como a do inciso VII.
9. Revogação do crime de sedução: o crime de sedução previsto no art. 217 do Código penal era criticado por grande parcela da doutrina. Já não se justificava falar em inexperiência da vítima, com mais de 14 anos. Era outro dispositivo que via a mulher como uma virgem desprotegida. Somente ela podia ser sujeito passivo do crime. Cuidava-se, como se vê, de dispositivo penal discriminatório e que pouco tem a ver com a autodeterminação das pessoas. Nesse ponto, claro, a lei penal nova é retroativa (porque favorece o agente). Mesmo quem já foi condenado definitivamente pelo crime de sedução pode se beneficiar com a nova lei (porque estamos diante de um caso de abolitio criminis).
10. Revogação do crime de rapto: foram revogados tanto o delito de rapto violento como o de rapto consensual, assim como as disposições pertinentes a eles (CP, arts. 219, 220, 221 e 222). As derradeiras considerações relacionadas com a abolitio criminis feitas no item anterior são naturalmente válidas para o rapto. Lei nova favorável sempre retroage. Agora, quem raptar (seqüestrar) qualquer pessoa com fim libidinoso vai responder pelo crime de seqüestro qualificado (CP, art. 148, § 1.º, inc. V). A finalidade do agente é marcante nesse caso (pois reside nela a diferenciação dos delitos): quem seqüestra uma pessoa com o fim de privá-la da liberdade responde por seqüestro simples; se a finalidade é libidinosa, há seqüestro qualificado; se a finalidade é extorquir vantagem econômica, crime de extorsão. De acordo com velha classificação penal, o seqüestro qualificado pelo fim libidinoso é um crime formal, leia-se, não é preciso acontecer o ato libidinoso para a consumação do crime (basta a finalidade do agente). Aqui reside mais um exemplo de crime de intenção transcendental, que é dirigida a um resultado (ato libidinoso, no caso) que não é exigido pelo tipo para a consumação do crime. Crime de resultado cortado (ou antecipado).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do Ipan (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e fundador do IELF PRO OMNIS (Rede de Ensino Telepresencial 1.ª da América Latina www.proomnis.com.br)