Os principais pontos do Código penal reformados pela recente Lei 11.106, de 28 de março de 2005, são os seguintes:
1. Eliminação do requisito normativo cultural ?mulher honesta?: esse requisito normativo cultural aparecia em vários dispositivos penais (antigo crime de rapto, antigo crime de posse sexual mediante fraude etc.). Somente a mulher ?honesta? podia ser vítima desses crimes. Cuidava-se de tipo penal aberto, que exigia juízo valorativo do juiz. Dependíamos da cabeça de cada juiz para se descobrir o que era ?mulher honesta?. Na verdade, a honestidade da mulher jamais pode ser objeto de tutela penal. No mundo dos crimes sexuais, o que importa é a liberdade sexual da mulher e do homem. Ninguém pode ser compelido a praticar ou presenciar qualquer ato atentatório à sua liberdade. Fundamental, portanto, é a liberdade, não a honestidade. Andou bem o legislador em eliminar o conceito de mulher honesta do Código penal. Isso ocorreu inclusive no art. 215 (posse sexual mediante fraude), que agora só menciona como sujeito passivo ?mulher? (sem o qualificativo ?honesta?).
2. Nova redação ao art. 216: cuida o art. 216 do atentado ao pudor mediante fraude. Antes somente a mulher honesta podia ser vítima desse delito. Agora o texto legal fala adequadamente em ?alguém? (homem ou mulher). No parágrafo único desse dispositivo também há uma alteração: antes se falava em ofendida, agora se menciona vítima (que envolve homem ou mulher).
3. Revogação da condição de casado como causa de aumento de pena: não se justificava efetivamente essa causa de aumento de pena nos crimes sexuais. Ser casado ou não, não altera o conteúdo do injusto penal (salvo se se raciona em termos morais). A ofensa ao bem jurídico liberdade sexual independe do estado civil do agente. Se no caso concreto essa circunstância contar com relevância, pode o juiz levá-la em consideração no momento da pena (nos termos do art. 59 do CP). Mas isso fica reservado para a excepcionalidade (não a regra).
4. Eliminação do delito de adultério: o crime de adultério estava previsto no art. 240 do Código penal e foi revogado. Mais um caso de abolitio criminis. Praticamente já não se via condenação penal por esse dispositivo. Era uma hipótese de ?revogação? da lei (isto é, não uso, não incidência) pelos costumes (leia-se: a sociedade brasileira já não acreditava na eficácia do Direito penal para evitar o adultério). Juridicamente não se pode afirmar que os costumes revogam a lei. Mas é certo que pode colocá-la em desuso. Era o art. 240 do CP, ademais, exemplo de ação penal privada personalíssima (porque somente a vítima e ninguém mais podia agir em juízo para processar o agente). Em boa hora o legislador penal revogou o delito de adultério, que encontra melhor atenção no âmbito do Direito civil.
5. Crimes contra os costumes: perdeu o legislador uma excelente oportunidade para alterar o nome dado ao Título VI do Código penal (crimes contra os costumes). Não são os costumes o objeto jurídico da tutela penal. Toda dogmática penal, na atualidade, só concebe a existência de crime sexual que atente contra a liberdade sexual ou contra o normal desenvolvimento da personalidade (em formação) da criança. Fora disso não é admissível a incidência do Direito penal, sob pena de se confundir a moral com o Direito penal, que não serve para corrigir pessoas nem para proteger determinadas concepções morais. Por força do princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, não há espaço no Direito penal para a tutela de uma determinada moral ou religião ou partido político ou ideologia etc.
6. Tráfico internacional e interno de pessoas: antes nosso Código penal só cuidava do tráfico internacional de mulher, para o fim do exercício da prostituição, e agora fala em pessoa. Aproveitou o legislador a ocasião, de outro lado, para criar o delito de tráfico interno (dentro do país) de pessoas, para o exercício da prostituição. Sabe-se que a prostituição não é crime, mas em torno dela ainda existem vários delitos. De qualquer modo, para o reconhecimento de qualquer infração envolvendo a prostituição o fundamental é identificar não só a ?exploração? senão também a clara ofensa a outros bens jurídicos da vítima (liberdade individual, liberdade sexual etc.). Sempre que se tratar de vítima maior, que de modo algum tenha sido ludibriada ou iludida, isto é, sempre que a vítima tenha aderido livremente (não coagida) ao tráfico, conquistando ela mesma certa vantagem com esse ato, não consigo vislumbrar delito algum. Todos os bens jurídicos envolvidos nesse tráfico são disponíveis. O consentimento válido da vítima elimina a situação de risco proibido. Logo, pela teoria da imputação objetiva, não havendo risco proibido, não há imputação objetiva da conduta (isto é, não há tipicidade, não há crime).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e fundador do IELF PRO OMNIS (Rede de Ensino Telepresencial 1.ª da América Latina www.proomnis.com.br)