Após mais de uma década de discussões o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de 2004, publicada no Diário Oficial da União em 31.12.04, a chamada Reforma do Judiciário, com o intuito de dar ao Poder Judiciário maior transparência e celeridade.
Dentre os aspectos modificativos que a reforma trouxe, no que tange a Justiça do Trabalho, ressalta-se a ampliação de sua competência e a quase, senão, extinção do seu Poder Normativo.
No que se refere ao Poder Normativo da Justiça do Trabalho o anterior artigo 114, § 2.º da Constituição Federal, alterado pela referida emenda, preceituava:
?Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalhou?. (grifo nosso)
Em razão desse comando constitucional a Justiça do Trabalho detinha a possibilidade de estabelecer, de criar normas aplicáveis às partes envolvidas nos dissídios coletivos, sem esquecer de observar as normas do direito positivo que limitavam esse exercício, função essa inerente ao Poder Legislativo.
É de conhecimento a separação entre os poderes (legislativo, executivo e judiciário), entretanto, o dispositivo constitucional em tela, de forma excepcional, delegava, autorizava essa invasão de função do poder judiciário, até porque sem o poder normativo a Justiça do Trabalho ficaria, por assim dizer, engessada para julgar os dissídios coletivos a ela submetida. De se ponderar que as relações de trabalho subordinado se modificam velozmente ante as transformações econômicas e tecnológicas daí a importância do Poder Normativo da Justiça do Trabalho. Nesse diapasão, de se lembrar ainda do poder discricionário do magistrado.
Em artigo publicado, Nelson Nazar(1) aborda a importância do Poder Normativo da Justiça do Trabalho fazendo a seguinte afirmação:
?A harmonia desse sistema se desfaz se houver a extinção da possibilidade normatizadora da Justiça do Trabalho. Pior, direitos e garantias consideradas normas pétreas pelo sistema não teriam condições de ser implementadas sem a existência da normatização positiva, como regra contida na norma pressuposta, no dizer de Eros Roberto Grau(2)?.
Também, em outro artigo, Marcos Neves Fava(3) faz as seguintes ponderações:
"Restou, pois, reduzidíssimo o poder criativo dos Tribunais Trabalhistas, alimentados, ao longo de décadas, por "amplíssima criatividade" no estabelecimento de novas condições de trabalho, à margem da lei positiva. Desacompanhada de radical transformação do sistema sindical pátrio, com maior sensível da re-presentatividade, da organização e da vocação negocial das entidades representativas de trabalhadores, a mudança constitucional representará grave involução das aquisições obreiras das últimas décadas?. (grifo nosso)
Com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 45, restaram, também, revogados os parágrafos do artigo 114 da CF, sendo que o mencionado § 2.º investia o judiciário trabalhista do Poder Normativo.
O Novo caput do artigo 114 da CF ficou com a seguinte redação:
"Compete à Justiça do Trabalho processar e Julgar:?
Vê-se, em primeiro lugar, que foi suprimida no novo caput a palavra conciliar que vinha da redação anterior do mencionado artigo.
Nos dizeres de Maurício de Carvalho Salviano(4): "… a técnica redacional utilizada foi perfeita, pois não há como tentar conciliar, ou não estão submetidas à conciliação os mandados de segurança e o habeas corpus, que estão arrolados na nova redação do artigo 114…".
Não obstante a lei maior não mencionar a conciliação, não se observa, salvo maior juízo, nenhum prejuízo na tentativa da conciliação nos procedimentos comuns da Justiça do Trabalho, como determina o artigo 764, § 1.º da CLT, até porque com a reforma o legislador preconiza a negociação e seria um contra-senso proibir a conciliação, uma característica enraizada no processo trabalhista.
O novo § 2.º do artigo 114 da CF passou a ter a seguinte redação:
?Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente". (grifo nosso)
Atualmente com essa nova redação a Justiça do Trabalho não pode mais estabelecer normas visando melhorar as condições de trabalho (Poder Normativo), mas, só decidir a controvérsia dando ganho de causa para uma das partes de acordo com o que foi requerido, respeitando as ?disposições mínimas legais de proteção ao trabalho?. Também, observa-se ainda no mesmo § 2.º que, aparentemente, o legislador, no afã de ver o conflito solucionado amigavelmente, praticamente não permite que o conflito seja apreciado pela Justiça do Trabalho, quando impõe uma ?…condição consensual para o ajuizamento do dissídio coletivo…?(5) (grifo nosso), ou seja, determina que havendo a recusa na negociação, o dissídio coletivo só poderá ser ajuizado de ?comum acordo". Ora, se as partes não chegaram a um acordo na negociação coletiva dificilmente, "de comum acordo", irão juntas ajuizar o dissídio, ou seja, assinar a petição inicial. Não havendo consenso, não pode esta situação ficar indefinidamente sem solução, ademais, não se pode esquecer do artigo 5.º, XXXV, da CF o qual dispõe: ?a lei não excluíra da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito?, portanto, a condição consensual imposta pelo legislador necessita de uma análise mais profunda sob o prisma constitucional.
A impressão que fica é que o legislador tenta forçar as partes ao acordo dificultando o ajuizamento do dissídio que deverá ser subscrito pelas partes envolvidas.
O futuro irá dizer como será essa queda de braço entre patrões e empregados e o preço a ser pago, seja pelos empregadores, empregados ou pela própria sociedade que sofre com os impasses.
Oportuno registrar que o Ministério Público do Trabalho poderá, em caso de greve em atividade essencial, com a possibilidade de lesão de interesse público, ajuizar o dissídio coletivo, porém, ressalta-se, somente para as atividades tidas como essenciais, conforme orientação do novo § 3.º do artigo 114 da CF.
De se observar ainda através do referido § 2.º do artigo 114 da CF que as partes podem, antes de ajuizar o dissídio, optar pela arbitragem, como forma de solução de seus conflitos, o que já era previsto na redação anterior do artigo 114. Na arbitragem os interessados elegem uma pessoa ou um órgão para dirimir o conflito, impondo uma solução, sentença arbitral, a qual não cabe recurso e nem há necessidade de homologação pelo judiciário trabalhista (artigo 18 da lei n.º 9.307/96). Caso não seja cumprida a sentença arbitral o caminho é a sua execução, como bem ensina Sergio Pinto Martins(6): "Tem a sentença arbitral eficácia de título executivo judicial (art. 584, VI, do CPC), podendo, assim, ser executada, se não cumprida".
Ressalta-se que a escolha da arbitragem como forma de solução do conflito não é obrigatória e diferentemente da mediação, o mediador apresenta a sua proposta, a qual não pode ser imposta (Decreto n.º 1572/95), já na arbitragem o arbitro opta por uma das propostas das partes.
Também, se denota da leitura do mencionado § 2.º que o eventual dissídio a ser ajuizado será o de natureza econômica, na redação anterior o artigo 114 da CF não fazia nenhuma distinção.
Segundo os ensinamentos de Sergio Pinto Martins(7):
?Os conflitos coletivos podem ser divididos em econômicos ou de interesse e jurídico. Os conflitos econômicos ou de interesse são aqueles em que os trabalhadores reivindicam novas e melhores condições de trabalho, especialmente novas condições salariais. Os conflitos jurídicos, ou de direito, são aqueles em que há divergência na aplicação ou na interpretação de determinada norma jurídica".
Para Marcos Neves Fava(8) ao analisar o referido § 2.º, entende: "… os dissídios coletivos poderão ter conteúdo apenas econômico – retius, de interesse – e não mais de interpretação ou revisão".
Já para José Alberto Couto Maciel(9), quando analisava a Reforma, naquele momento ainda não promulgada, afirmava:
"No texto ainda em vigor possibilita-se ajuizamento de dissídio coletivo, o que, tecnicamente me parece melhor, pois ao indicar os dissídios coletivos de natureza econômica deveria o novo texto incluir também os de natureza jurídica, uma vez que se trata de dissídio coletivo sobre relação de trabalho, não estando ele excluído, expressamente, da competência trabalhista".
Independentemente de qual dissídio está sob a competência da Justiça do Trabalho, esta não mais poderá criar nenhum tipo de norma e, sim, somente decidir, pois ausente o poder normativo.
O anterior caput do artigo 114 da CF deixava claro que a competência da Justiça do Trabalho abrangia o trabalho subordinado (art. 3.º, CLT), salvo exceções, entretanto, o novo inciso I do atual artigo 114 alargou essa competência, vejamos:
?Art. 114 Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios?. (grifo nosso)
Observe que o inciso acima menciona relação de trabalho e não de emprego, portanto, a competência da Justiça do Trabalho passou a ser maior.
Assim, qualquer que seja a relação de trabalho (não de emprego) a Justiça do Trabalho será competente para apreciá-la. O trabalho autônomo, eventual e qualquer outra forma de prestação de serviço não subordinado, como, por exemplo, aquele prestado pelo advogado ou médico, deverá ser analisado pelo judiciário trabalhista.
Importante indagar, não obstante a competência da Justiça de processar e julgar as relações de trabalho, qual será a legislação material a aplicar nessas relações sem subordinação? O artigo 593 do Código Civil esclarece a questão.
O artigo 593 do Código Civil, no Capítulo VII – Da Prestação de Serviço, dispõe: ?A prestação de serviço, que não estiver sujeita às leis trabalhistas ou à lei especial, reger-se-á pelas disposições deste Capítulo?.
José Alberto Couto Maciel(10) de forma cristalina aponta o seguinte caminho:
?Assim, serão julgados na Justiça trabalhista os processos envolvendo relações subordinadas, e nessas hipóteses aplicável será o processo do trabalho, e os concernentes a relação de trabalho sem subordinação, mediante prestações de serviço ou empreitada, aplicando-se a legislação do Código Civil e do Processo Civil…".
No que diz respeito às lides sem subordinação, não se buscará direitos previstos na CLT e, sim, somente aquilo que foi contratado.
A dúvida que persiste é quanto qual processo adotar, o trabalhista ou o civil para aquelas relações de trabalho. De se ponderar que o Direito do Trabalho já vem se socorrendo do Código de Processo Civil, naquilo que não for incompatível com suas normas (art. 769, CLT), porém, não se pode deixar de esclarecer que esse artigo celetista sempre teve como alvo à relação de emprego. De primeiro momento apresenta-se ser mais simples e célere aplicar um só procedimento, o trabalhista e não este e outros procedimentos diferentes previstos no Código de Processo Civil, mas será possível compatibilizar os institutos?
Em artigo publicado por Hermindo Duarte Filho(11), há a seguinte interrogação:
"PROCEDIMENTO HÍBRIDO?
Tentando preservar a celeridade, convém questionar até onde seria possível utilizar-se do procedimento trabalhista para as causas decorrentes da relação de trabalho sem subordinação. A matéria merece debate, a fim de que os juizes de primeiro grau, principalmente, adotem procedimento único. Assim, por exemplo: réu será citado para apresentar sua resposta no prazo legal ou fará isso em audiência? E possível à aplicação da CLT, ainda que parcialmente".
De se lembrar que o artigo 652, III da CLT já previa, antes da Emenda n.º 45, a competência da Justiça do Trabalho para julgar questões que envolviam o chamado "pequeno empreiteiro" (relação de trabalho), portanto, parece lógico que a Justiça do Trabalho continue utilizando os mesmos procedimentos aplicados nessas ações eventualmente a ela submetida.
Um outro aspecto importante suscitado por Hermindo Duarte Filho(12) diz respeito aos artigos 87 e 111 do CPC, sustenta o ilustre professor que todos os feitos que envolvam relação de trabalho sem subordinação devem ser remetidos à Justiça do Trabalho.
Dispõe o Artigo 87 do CPC:
"Determina-se a competência no momento em que a ação é proposta. São irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário ou alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia". (grifo nosso)
Caso esse entendimento prevaleça, a reforma que buscava celeridade ficará prejudicada, aliás, somente com as novas ações de relação de trabalho, a Justiça de Trabalho ficará ainda mais sobrecarregada de serviço e necessitará de mais instrumentos para tal encargo, sob a pena da reforma trazer um retrocesso.
Para terminar, de se ressaltar, que a Emenda n.º 45 ao alterar o artigo 114 da CF ampliou também a competência da Justiça do Trabalho para as ações dos servidores públicos, para as ações que envolvam o exercício de greve, de re-presentação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores e entre sindicatos e empregadores, mandado de segurança, habeas corpus e habeas data, conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ações de indenização por dano moral ou patrimonial, ações relativas às penalidades administrativas impostas pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho, ações referentes à execução, de ofício das contribuições sociais, e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei, conforme, respectivamente, dispõe os incisos I, lI, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX do atual artigo 114 do CF, que merecem um estudo aprofundado em outra oportunidade.
Notas
(1) In Artigo publicado na Revista LTr, ano 68, novembro 2004, pág. 1322, com o título "Poder Normativo da Justiça do Trabalho: Manutenção ou Extinção".
(2) In "A ordem econômica na Constituição de 1988", 6.ª ed., rev. e atual., Malheiros: São Paulo, 2001.
(3) In Artigo Publicado no Suplemento Trabalhista da LTr, ed. n.º 010/05, com o título "Cadê o Poder Normativo? Primeiras Ponderações sobre um aspecto Restritivo na Ampliação de Competência Instituída pela Emenda Constitucional. n.º 45".
(4) In Artigo Pub1icado no Suplemento Trabalhista da LTr, ed. n.º 012/05, com o titulo "Os efeitos no Direito Material e Processual do Trabalho da Retirada da Palavra "Conciliar" do Caput do artigo 114 da CF, pela reforma do Judiciário".
(5) désio Passos, In Artigo publicado no Jornal "O Estado do Paraná", Caderno Direito e Justiça, de 28.11.04, pág. 5.
(6) Martins, Sergio Pinto, "Direito do Trabalho". São Paulo: Editora Atlas, 20.ª ed. 2004, pág. 789.
(7) Martins, Sérgio Pinto, "Direito Processual do Trabalho". São Paulo: Editora Atlas, 21.ª ed., 2004, pág. 599/600.
(8) Id.;
(9) In Artigo publicado na Revista Jurídica Consulex, ano VIII, n.º 190, de 15.12.04, pág. 29, com o título ?A Nova Competência da Justiça do Trabalhoª.
(10) Ibid., pág. 28.
(11) In Artigo publicado no Jornal "O Estado do Paraná", Caderno Direito e Justiça, de 23.01.05, pág. 5.
(12) Id.;
Vitor Manoel Castan é advogado e professor de Direito do Trabalho da Faculdade Integrada de Campo Mourão/PR e mestrando em Direito do Trabalho pela PUC-SP. E-mail: vitorcastan@uol.com.br