O Ministério da Justiça divulgou suas propostas de alteração legislativa no Código de Trânsito Brasileiro, visando a diminuir as mortes e acidentes no trânsito.
Cuida-se de proposta, na parte penal, repleta de falhas e imprecisões. Uma das omissões mais gritantes consiste em não prever uma nova configuração típica para a chamada condução temerária, que possui três modalidades: (a) condução temerária com perigo indeterminado; (b) condução temerária com perigo determinado e (c) condução temerária com desapreço para o bem jurídico vida (condução homicida ou suicida).
A proposta legislativa do governo precisa ser melhorada em vários aspectos. Vejamos alguns deles:
1.ª) Condução temerária com perigo indeterminado: essa modalidade típica não aparece no projeto governamental, mas é necessária. São exemplos de condução temerária: dirigir embriagado ou em velocidade excessiva, gerando risco para a segurança viária. Esses exemplos já estão contemplados em outros tipos penais (306, 311 e 312-A). Ocorre que, além deles, outros fatos revelam a condução temerária e não estão tipificados no CTB. Exemplo: ?cavalo de pau? em via pública. Isso acaba se enquadrando na contravenção penal do art. 34 da LCP. Mas esse fato é muito relevante para ser considerado como mera contravenção penal.
Nossa proposta de tipificação é a seguinte: ?Art. 302-A. Conduzir veículo automotor em via pública com temeridade manifesta geradora de risco para a segurança viária: Penas – prestação de serviços à comunidade ou limitação de fim de semana de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor?.
O que acaba de ser proposto é o delito de condução temerária de perigo concreto indeterminado, ou seja, basta a criação de risco para a segurança viária, sem necessidade de comprovar perigo concreto para uma pessoa determinada (concreta).
Exemplo: ?cavalo de pau? em via pública, sem colocar em risco nenhuma pessoa concreta. O risco, nesse caso, afeta exclusivamente a segurança viária. Esse resultado exigido pelo tipo (risco para a segurança viária) é o que diferencia o delito da infração administrativa (esta última tem por fundamento, normalmente, o perigo abstrato).
2.ª) Condução temerária com perigo determinado: se o agente, dirigindo temerariamente, vem a colocar em risco a vida ou a integridade física de alguma pessoa concreta (determinada), o fato passa a ter maior gravidade.
Nossa proposta legislativa é a seguinte: ?Art. 302-B. Conduzir veículo automotor em via pública com temeridade manifesta, colocando em risco a vida ou a integridade física de outrem: Penas – prestação de serviços à comunidade ou limitação de fim de semana de 6 (seis) meses a 3 (três) anos e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Observar-se-á nesse caso o disposto na Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995?.
A pena, nesse caso, é maior, tendo em vista a ocorrência de um perigo mais intenso (concreto determinado). De qualquer maneira, ainda estamos no terreno do perigo, por isso que não se justifica pena de prisão. Para não restar nenhuma dúvida, registra-se que também esse delito é da competência dos juizados criminais.
3.ª) Condução homicida ou suicida: condução homicida ou suicida consiste em dirigir com temeridade manifesta e, ao mesmo tempo, com consciente desapreço pela vida alheia. Exemplo: dirigir na contramão de modo consciente, representando a possibilidade de uma morte, aceitando-a e atuando com total desapreço pela vida alheia. Outro exemplo: participar de ?racha? (corrida não permitida) e de modo consciente representar o resultado morte, aceitando-o e agindo com total indiferença frente ao bem jurídico vida.
Nossa proposta legislativa é a seguinte: ?Art. 302-C. Conduzir veículo automotor em via pública com temeridade manifesta, colocando em risco a vida de outrem com consciente desapreço por esse bem jurídico: Penas reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos, suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor e multa?. Quando a conduta perigosa não afetar pessoas concretas, a pena de reclusão será reduzida pela metade?. (NR) ?Parágrafo único. Se da conduta resulta morte, aplica-se o disposto no art. 121 do CP?.
O delito em destaque se chama condução homicida ou suicida porque o agente pode (a) matar um terceiro ou (b) se matar. Na primeira hipótese temos a condução homicida. Na segunda a condução suicida (caso Plens, ocorrido na rodovia Castelo Branco em fevereiro de 2008). Pode dar-se ainda uma combinação das duas formas: o condutor pode matar terceiro e também morrer.
Penalmente falando o que importa é a condução homicida, que pode configurar: (a) um resultado de perigo para pessoa determinada (quase matou uma pessoa); (b) um resultado de perigo para pessoas indeterminadas (não afetação de pessoas concretas); (c) o resultado morte. Exemplos: (a) o sujeito dirige em alta velocidade e na contramão numa rodovia e quase mata um motorista que estava na mão correta; (b) o sujeito dirige na contramão numa rodovia, mas naquele momento nenhum motorista concreto correu risco de vida; (c) o sujeito dirige na contramão numa rodovia e mata um terceiro.
Na primeira hipótese (risco concreto para pessoa determinada) o que temos é uma tentativa de homicídio cometida com dolo eventual. O dolo eventual em direito penal exige: (a) representação do resultado; (b) aceitação do resultado (?se morrer, morreu?); (c) indiferença (desapreço) frente ao bem jurídico.
Na atualidade, o enquadramento da condução homicida vem gerando muita controvérsia. Há muita imprecisão sobre isso. Tudo decorre da ausência de uma tipificação especial (ad hoc). Pode a condução homicida surgir em razão de uma aposta, do ânimo de exibição, de um ?desgosto? etc. Dirigir na contramão já retrata uma condução temerária. O delito de condução homicida não deixa de ser uma condução temerária, porém, com alguns ingredientes que lhe dão vida própria. O fundamental consiste no total desapreço pelo bem jurídico vida (alheia).
É esse manifesto desapreço pela vida alheia que conduz à pena de 3 a 10 anos de reclusão. Quando o agente não morre ele pratica o delito que estamos analisando (condução homicida).
O que justifica a pena de 3 a 10 anos nesse caso é o dado subjetivo exigido pelo tipo: consciente desapreço pela vida alheia. Não se trata, como se vê, de um delito culposo. Estamos diante de um delito doloso eventual. Isso foge da estrutura normal dos delitos de trânsito (que, em geral, são culposos). O dolo do agente abrange não só a infração da norma (o sujeito dirige com consciência de que viola uma regra de trânsito), senão também o próprio resultado (ou seja: para ele a morte de um terceiro passa a ser indiferente). A uma conduta altamente temerária se alia um dado subjetivo gravemente reprovável, que é a indiferença (o desapreço) pela vida alheia. O sujeito tem consciência da infração da norma de trânsito e ainda diz: ?se morrer, morreu?. A postura subjetiva do agente, no dolo eventual, revela alta reprovabilidade porque ele aceita a morte, ou seja, o ?que se dane?.
Se o sujeito trafega na contramão de uma rodovia mas não coloca em perigo concreto a vida de ninguém, a pena é reduzida de metade, em razão da proporcionalidade (fato de menor gravidade tem que ser punido com pena menor).
Se o sujeito da condução homicida mata um terceiro, responde pelo delito de homicídio consumado (CP, art. 121).
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan -Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais ? www.lfg.com.br)