Nem bem nos recuperamos da ressaca cívica representada pelas comemorações que sucederam a eleição e a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando imaginávamos que iriam finalmente decolar velhos projetos de distribuição de renda que dormitaram durante tantos anos nos escaninhos da esquerda tupiniquim, tais como uma política tributária mais agressiva em relação aos bancos e às instituições de crédito e a ressurreição do natimorto imposto sobre a fortuna e já nos deparamos estarrecidos com a repetição de uma velha ladainha que se ouviu em alto e bom som durante os oito patéticos anos do governo FHC.
“De novo” o “rombo” causado pelos encargos previdenciários dos servidores públicos federais é eleito como o “inimigo número 1ª de uma política governamental voltada para investimentos públicos e sociais.
Os servidores públicos federais inativos e ativos são novamente elencados como a causa principal do déficit público. Sucatear o serviço público e o servidor público prossegue sendo o “ovo de Colombo” a viabilizar as políticas sociais…
No intento de tornar patente o engodo que representam tais afirmações, dois aspectos merecem ser analisados. O primeiro diz respeito ao porquê desta insistente desmoralização do Estado em geral e do servidor público em particular. O segundo refere-se às verdadeiras razões do déficit das contas públicas nacionais.
Induvidoso que o Brasil da era FHC adotou o modelo de Estado viabilizador da acumulação de capitais voltado para salvaguardar os interesses das instituições financeiras nacionais e internacionais.
Neste diapasão, cada vez mais a riqueza disponível é desviada para financiar o pagamento dos encargos da dívida pública. Os setores produtivos tradicionalmente nas mãos do Estado são transferidos paulatinamente para a iniciativa privada, desaparecendo gradualmente a qualidade do Poder Público de moderador dos excessos do capital e elemento propiciador da distribuição de renda e da atenuação dos desníveis e dos conflitos sociais.
No lugar do Estado surge o mercado como a solução para todas as mazelas que afligem o País, golpeando-se os direitos trabalhistas e sociais, numa atitude de servilismo para com o capital financeiro capaz de criar um clima psicológico de euforia e aceitação coletiva do mito no sentido de que o que é público é ineficiente e perdulário e o que é privado é eficiente, produtivo e racional.
Tamanha é a colaboração da imprensa com o desenvolvimento deste mito que as pessoas passam a aceitá-lo como verdadeiro dogma, esquecendo-se da eficiência dos Correios, dos Bombeiros, do Ensino Público Superior (a supremacia sobre o Ensino Superior Privado vem sendo atestada, anualmente, pelos resultados dos “provões”, especialmente na esfera dos cursos jurídicos) e das secretarias das Varas do Trabalho e Federais (estas notoriamente mais eficientes que os seus congêneres privatizados, os Cartórios Cíveis e Criminais da Justiça Estadual).
Para que o mito transforme-se o mais rapidamente possível em realidade, em detrimento dos setores menos aquinhoados da sociedade, que precisam do Estado para viabilizar a satisfação de suas necessidades básicas e em benefício das elites e do capital financeiro, que desejam a sua retirada de cena a fim de que seja facilitada a concentração de riqueza em poder daqueles que já a tem, é preciso aniquilar e desmoralizar o Estado e acabar com o profissionalismo do servidor público.
Paradoxalmente ao ideário neoliberal de esvaziar a atuação dos Poderes Públicos tornando-o mínimo no quesito “prestação de serviços”, o Estado apresenta-se como “máximo” no que se refere à carga tributária imposta aos cidadãos, que já oscila em torno de 34% do PIB.
Ao se buscarem as verdadeiras razões para tamanha voracidade tributária de um Estado cada vez mais ausente do dia a dia dos cidadãos, depara-se com uma política econômica equivocada.
Num primeiro momento despenderam-se bilhões de dólares das nossas reservas para manter a moeda artificialmente supervalorizada, estratégia imposta pelo Fundo Monetário Nacional, finalmente abandonada, que “pavimentou” o desastre econômico da Argentina ao baratear o produto estrangeiro e retirar a competitividade do produto nacional, estimulando a importação e dificultando a exportação, com conseqüências funestas para a balança de pagamentos.
Em seguida, utilizam-se bilhões de reais para manter o fluxo do capital especulatório, com a ascensão dos juros às alturas e o controle da inflação através da recessão e do desaquecimento da economia.
Neste quadro, de acordo com as próprias estatísticas oficiais, o que se gasta com o custeio da dívida interna e externa é amazonicamente superior aos recursos utilizados com o servidor público ativo e inativo.
Dados inseridos em Relatório do Tribunal de Contas da União veiculados em interessante trabalho entitulado “A PREVIDÊNCIA SOCIAL DO SERVIDOR PÚBLICO – O QUE A SOCIEDADE PRECISA SABER”, inspirador das presentes reflexões, localizável no “site” do Sindifisp-SP, atesta que as despesas orçamentárias com juros cresceram 336,4% entre 1995 e 2001, tendo aumentado, neste mesmo período, em 114,6% as despesas com previdência e assistência social, 72,7% as despesas com pessoal, 61,5% aquelas referentes à saúde e saneamento e 27,1% as com educação e cultura.
Estudos atuariais desenvolvidos pela “Superintendência de Desenvolvimentos de Produtos de Previdência da `Sul América'” a partir de uma taxa anual de juros de 8,5% ao ano, estimam a necessidade de uma contribuição de 21,8% para uma mulher que ingressasse no serviço público a partir de 1998 e pretendesse aposentar-se com 30 anos de contribuição e 55 anos de idade e de 12% para um homem que se aposente com 60 anos idade e 35 de contribuição.
Nas duas situações, levando-se em conta a contribuição de 11% do servidor e de 22% da União (tomando-se por paradigma o regime geral da Previdência Social, em que o empregador contribui com o dobro da contribuição do empregado), inexistente qualquer óbice atuarial para que seja custeada de forma integral a aposentadoria do servidor público federal.
Ainda mais considerando-se que até 1993 (Emenda Constitucional Número 03) não havia previsão legal para contribuição do servidor para a aposentadoria, mas apenas para pensão e assistência. E que não foram, após este ano, acumuladas em um fundo próprio as contribuições efetivadas, tampouco tendo a própria União realizado nem recolhido para um fundo as suas próprias contribuições em qualquer tempo, como seria atuarialmente imprescindível para que se pudesse falar em déficit no sistema.
Como se vê, o que se tenciona é construir um déficit artificiosamente, fazendo recair sobre os ombros do servidor público federal a responsabilidade em face da incúria do administrador e lhe atribuindo o custeio de sua aposentadoria em relação ao período anterior a 1993, quando as regras do jogo previdenciário atribuíam tal desiderato exclusivamente ao Tesouro Nacional, este sim, o único verdadeiramente inadimplente.
Assim, imperioso que se denunciem os ardis largamente difundidos pela imprensa e pelos reformadores de plantão. Isto porque pretendem nivelar por baixo, enfatizando e distorcendo as contradições existentes entre os regimes jurídicos previdenciários vigentes, comparando o do servidor público com o dos trabalhadores da iniciativa privada e propalando, dentre outras artimanhas, a “justiça” de se trabalhar por 35 anos com o auferimento de salário em torno de R$ 3.000,00 e se aposentar recebendo proventos de R$ 1.510,00, a qual deve ser “estendida”, a todo custo, ao servidor público.
Aquilo que deveria ser perseguido como direito fundamental de todo o trabalhador público e privado, a aposentadoria digna com rendimentos compatíveis com os auferidos enquanto na ativa, é tratado como privilégio do servidor público em verdadeira inversão de valores que merece o mais absoluto repúdio do cidadão medianamente informado. E o rótulo do privilégio é utilizado de forma singularmente maliciosa, na medida em que se omitem dois fatos essenciais: que o servidor público vem contribuindo, desde 1993, com percentual de 11% sobre a totalidade dos vencimentos auferidos, ao contrário do trabalhador na esfera privada, cuja contribuição tem como base de cálculo o teto de R$ 1.510,00; que a União jamais contribuiu com a sua parte, ao contrário do empregador privado que contribui com o dobro da contribuição de seus empregados.
Lamentável que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva e o Partido dos Trabalhadores, após terem criado a expectativa de enfrentarem com firmeza e honestidade os graves problemas sociais que assolam o País, tenham enveredado pelo sedutor atalho de promover a distribuição da riqueza transferindo-a de quem tem pouco para quem nada tem e deixando intocadas as elites e os grupos financeiros nacionais e internacionais.
Valdyr Perrini é vice-presidente do Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional e do Sindicato dos Professores do Ensino Superior de Curitiba e da Região Metropolitana, advogado trabalhista, professor de Direito do Trabalho da Pontifícia Universidade Católica, professor Licenciado de Direito Civil da Faculdade de Direito de Curitiba e procurador da Fazenda Nacional.