Reflexões sobre o homem

O que vem a ser verdadeiramente o Homem? Embora ele seja aquilo que todos sabemos que é, como disse há quase vinte e cinco séculos Demócrito, será que nós sabemos de fato, com certeza e rigor, o que ele é? Penso que não.

Para o Filósofo da Academia, ele nada mais é do que um insignificante bípede implume. Na esteira do pensamento platônico, o Estagirita considera-o mero animal político, dotado de palavra e pensamento (Zoon politikon, logon, echon). Já Protágoras, mais ambicioso que Aristóteles, vê no homem o centro e a medida de todas as coisas .

Pascal, por seu turno, nas suas lúcidas e profundas meditações metafísicas, vislumbra no homem um caniço pensante que se agita ao sabor do vento. Definição que não anda muito longe da feita por Descartes, que o considera simplesmente une chose qui pense ? uma coisa que pensa.

Para De Bonald, ele é uma inteligência servida por órgãos. Mas, se o aspecto intelectual do ser humano tem sido enfatizado pelos maiores pensadores da humanidade, o seu lado animal tem sido objeto também de especial consideração.

Assim é que, para Fénelon, o homem não passa de uma fera que se agita, e para Hobbes, repetindo de certo modo Plotino, ele é o lobo do homem. Animal que joga, segundo Lamb, animal que ri, conforme Whitehead, animal religioso, de acordo com Burke, mero fabricante de brinquedos, como pretende Franklin, pêndulo a oscilar perpetuamente entre o prazer e a dor, pela ótica poética de Byron, o homem é certamente tudo isso. Mas ë mais, muito mais do que isso.

Sapiens, ludens, laborans, oeconomicus, faber ? o homo é sobretudo um ser em expansão. Ele está se construindo permanentemente. E é nesse processo incessante de autoconstrução, que vem das cavernas imemoriais do paleolítico até este limiar da conquista do cosmos, que o homem pode ser considerado, como quer Ponge ? o futuro do homem.

Uma coisa é indiscutível e indubitável: trata-se de um ser único, feito de luz que cega e de escuridão impenetrável. Ele é sem dúvida aquela oficina de todas as criaturas a que se refere Escoto Erígena, o algo que se situa entre os deuses e as feras, de que fala Plotino.

Multifacetado, multímodo, protéico, pode ser tudo. Pode mostrar a face radiante, apolínea, de Ariel, e os esgares noturnos, dionisíacos, de Caliban. Pode ser ? e é, muitas vezes ? Caim e Abel, Nero e São Francisco de Assis, Mozart e Hitler, poço anônimo de ignorância e Einstein. Descobre a penicilina e a bomba atômica, a arte de salvar vidas, no varejo, e a ciência de matar, por atacado. Consegue atingir a face oculta da lua e sabe chafurdar superiormente nos pântanos da iniqüidade, da aberração e do crime.

Animal simbólico, segundo Cassirer, aquele que avalia e jamais se define, na opinião de Nietzsche, o homem é sobretudo uma criatura em busca do Criador. É um ser que tende para Deus, num tropismo invencível, inexoravelmente. O ateísmo humano é por isso mesmo um anacronismo, uma contradição em termos: o ser que possui a consciência de ser, não pode deixar de admitir a existência do Ser.

Feito pelo Sumo Artífice à Sua imagem e semelhança, secundo Scripturas, o homem surge no planeta para cumprir uma destinação superior. Pedaço de lama iluminado, na lição pascaliana, o homem é um animal peculiar: carrega no seu âmago uma chama que brilha, que cintila ? a alma. É com ela, nela e através dela que o ser humano adquire, em toda a plenitude, o seu perfil exato, a sua estatura definitiva. Frente a frente com o universo. Porém, maior do que ele. Pois só o espectador tem ciência e consciência do espetáculo. No sentido inverso, essa operação é impossível. Impensável.

Torre de carne e sangue e ossos, mas também de dúvidas, angústias e perplexidades, de sonhos e esperanças cuja cidadela o desespero às vezes sitia, numa guerra sem tréguas, o homem é uma seta arremessada do animal para o anjo, um dardo vivo de sangue e luz lançado nos latifúndios do espaço e do tempo.

A sua postura o mostra como um traço de união ? vertical ? entre a terra e o céu. O seu destino, a sua vocação é necessariamente a verticalidade. E a essa verticalidade exterior ? antítese e antípoda da horizontalidade animalesca ? há de corresponder, numa perfeita simetria, a verticalidade interior , espiritual.

No espantoso milagre da sua interioridade congênita, o homem, ser enigmático, finito, problemático, alberga no seu seio o infinito. Coisa efêmera, transitória, extremamente frágil, acalenta dentro de si a eternidade.

Tout home rêve d’être Dieu. Sim, como escreve Malraux, todo homem sonha ser Deus. A sua intrínseca cumplicidade com a criação, a que alude Schelling, justifica essa tendência visceral, esse apetite, essa vocação nuclear para Deus. É o relativo em busca do Absoluto. E é talvez nessa busca insopitável do Outro que o homem acaba por encontrar-se a si mesmo. Definido e perfeito. Agora e para sempre.

João Manuel Simões

é escritor.

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