Referendo do Desarmamento: Acertos e Aberrações (II)

g11.jpgNo debate que se travou em torno do referendo do desarmamento alguns setores da mídia (diríamos tendencialmente sanguinária: assim por exemplo a edição da Veja de 05.10.2005, p. 76 e ss.) não estão perdendo a oportunidade de reiterar seus sensacionalistas, estridentes e costumeiros excessos. O primeiro deles: ?Os países que proibiram a venda de armas tiveram aumento da criminalidade e da crueldade dos bandidos? (p. 82).

Japão, Austrália e Inglaterra comprovam exatamente o contrário: adotaram fortíssima política de restrições e vedações e a criminalidade com arma de fogo não aumentou.

Jamaica sim teve sensível aumento da criminalidade, após a proibição do uso de arma de fogo. A origem, o incremento ou mesmo a variação da violência com arma de fogo, como se vê, está muito mais atrelada à cultura e à organização social (de cada povo) que à questão do armamento ou não da população.

Países organizados socialmente contam com baixos índices de violência. Sejam países altamente armados como a Suíça (1 homicídio para cada 100.000 habitantes), sejam países desarmados como o Japão (0,6 homicídio para cada 100.000 habitantes).

?As pessoas temem as armas. Com a população desarmada os riscos são menores para os criminosos. Os marginais sentem-se mais seguros.? Se as pessoas temem as armas vão certamente continuar temerosas, mesmo que o referendo ostente o resultado ?sim?. É que temos no Brasil 8,5 milhões de armas ilegais. Caso o referendo seja positivo, apenas 3.000 armas deixarão de ser comercializadas (para os particulares) no Brasil anualmente. Isso não é nada diante do armamento ilícito citado. Não há, portanto, como os marginais sentirem-se mais seguros. Seus riscos não diminuirão. Além das armas legais (8,5 milhões) temos mais 8,5 milhões de armas ilegais nas mãos da população. A vitória do ?sim?, obviamente, não vai tirá-las de circulação. O argumento de que o ?marginal? estará mais seguro, como se nota, é falso.

?O MST apóia o desarmamento. Logo, você não pode seguir essa política.? O MST vem se notabilizando pela adoção de meios ilícitos para alcançar os seus fins. Somos contrários a isso, porque gera muita violência desnecessária. Quando, entretanto, eles se mostram favoráveis a uma tese saudável, não há porque não tê-los como parceiros. Se Hitler tivesse descoberto a vacina contra o câncer, claro que iríamos apoiá-lo nesse ponto.

?O desarmamento da população é historicamente um dos pilares do totalitarismo.? O fato de Hitler, Stalin, Mussolini, Fidel Castro etc. terem proibido armas de fogo não significa que todos os que fazem isso são totalitários. Japão, Austrália, Canadá, Inglaterra, Espanha etc. assumiram duras políticas de restrição ou proibição das armas de fogo e não são Estados autoritários. A imputação arbitrária de rótulos pejorativos a quem defende teses contrárias às suas (?bicha?, gay, homossexual, comunista, corrupto, totalitário etc.) não enriquece nenhum debate. Aniquila-o.

?A polícia brasileira é incapaz de garantir a segurança dos cidadãos.? Nem a polícia nem a arma de fogo. Nenhuma das duas garante a segurança dos cidadãos de modo absoluto. De cada 16 pessoas armadas, 15 perdem a arma ou seus bens ou sua própria vida (estatística da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo). O cidadão tem todo direito de se defender, inclusive com arma de fogo, quando necessário. Mas é bom que saiba que as estatísticas não concorrem para depositar muita fé na arma de fogo. Quase sempre ela traduz mais desgraças que vantagens.

?A proibição vai alimentar o já fulgurante comércio ilegal de armas.? Os ?bandidos? não compram arma de fogo em lojas. Sempre se alimentaram do comércio ilegal. Logo, esse comércio já existia (e vai continuar existindo). Pode ser que depois do referendo (caso dê o ?sim?) as pessoas ?de bem? venham a incrementar esse comércio ilegal. Mas são elas justamente as pessoas que menos matam com arma de fogo. Logo, o comércio ilegal pode resultar incrementado, mas não a massa da violência. As pessoas ?de bem? que podem estar comprando armas ilegais são justamente as que quase nunca cometem homicídio.

?Os criminosos não vão obedecer à proibição do comércio de armas.? Os criminosos não obedecem nem à proibição do comércio de armas nem à proibição de matar, roubar etc. Os criminosos sempre compraram armas ilegalmente e continuarão fazendo isso. O referendo, como se vê, não está dirigido a eles, sim, a todos que queiram se conscientizar de que o problema da violência é muito mais profundo que o risco gerado pela simples posse de arma de fogo. Repita-se: um dos países proporcionalmente mais armados do mundo (Suíça: 2 milhões de armas para 7 milhões de pessoas) apresenta um dos menores índices de violência do planeta. Não existe relação direta entre ?povo armado e violência? ou ?povo desarmado e violência?, sim, entre ?desorganização social, desigualdade de renda, nível de escolaridade etc. e violência?.

?O referendo desvia a atenção daquilo que deve realmente ser feito: a limpeza e o aparelhamento da polícia, da justiça e das penitenciárias.? Isso que acaba de ser sugerido nada mais é que o verniz do problema. O que deve realmente ser feito é ir às bases da questão da violência gerada pelas armas de fogo: desigualdade de renda, desorganização social etc. O problema seríssimo da violência, em suma, merece ser focado de forma mais profunda e menos consumista. Não se coaduna, claro, com a superficialidade nem sensacionalismos mercantilistas.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-Geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista, fundador e presidente do PRO OMNIS-IELF (Rede Brasileira de Telensino – 1.ª do Brasil e da América Latina www.telensino.com.br

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