Nos último dias, como conseqüência do trágico e lamentável homicídio do casal de jovens que acampavam em um sítio abandonado, em São Paulo, do qual tomou parte um adolescente, veio novamente à tona – e com especial intensidade, o debate acerca da redução da idade da responsabilidade penal, estabelecida em 18 anos pelo art.228 de nossa Constituição Federal.
A verdadeira comoção nacional causada pelo triste episódio e sua repercussão na grande mídia, tem sido “capitalizada” pelos defensores de tal proposta, que é apregoada aos quatro ventos como a “grande solução” para o problema da violência no Brasil, cuja responsabilidade tem sido em grande parte atribuída ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que teria uma proposta ineficaz para o atendimento de adolescentes autores de infrações penais.
Diante de tal quadro, seria fácil sucumbir ao apelo populista e, numa reação quase que instintiva diante do cenário criado e dos argumentos utilizados (quase sempre apresentados de forma unilateral, com forte carga emocional), também passar a defender a redução da idade penal, para 16 anos de idade ou até menos (existem propostas que prevêem mesmo a inexistência de qualquer idade mínima para a responsabilidade penal, que assim poderia atingir mesmo crianças, que cada vez mais cedo são utilizadas por adultos inescrupulosos para a prática de infrações).
Preferimos, no entanto, adotar uma postura contrária a tal idéia, mesmo correndo o risco de sermos criticados e chamados de “ingênuos” (como aconteceu recentemente com o Ministro da Justiça), ou coisa pior.
É precisamente em momentos emblemáticos como o que estamos vivendo que devemos adotar uma postura crítica e racional acerca da matéria, que não pode ser analisada tomando por base um episódio isoladamente considerado e muito menos sob o ponto de vista da família da vítima – com todo o respeito que esta merece – mas sim de forma isenta e imparcial, à luz de todo o cenário político e social brasileiro e do ordenamento jurídico vigente.
Impossível deixar de considerar, por primeiro, que crianças e adolescentes são, estatisticamente falando, muito mais vítimas do que autores de violência do Brasil, e embora sejam destinatárias da “proteção integral” e da mais “absoluta prioridade” de tratamento por parte da família, da sociedade e, é claro, do Poder Público, são cotidianamente violadas e violentadas em seus direitos fundamentais, tanto por ação quanto por omissão daqueles que têm o dever legal e constitucional de defendê-los.
Ademais, temos que os defensores da redução da idade penal partem da premissa equivocada que os adolescentes autores de infrações penais não respondem por seus atos, tendo assim uma espécie de “carta branca” para desrespeitar a lei.
Ora, é elementar que todos – seja qual for sua idade – devem respeito a lei e aos direitos de seu próximo, sendo que o fato de adolescentes serem penalmente inimputáveis não significa, em absoluto, que deixem de responder por seus atos, embora isto ocorra de forma diferenciada, tal qual previsto na legislação especial, no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que neste aspecto se afilia a normas de Direito Internacional.
A propósito, não é equívoco ou exagero dizer que o adolescente tem o direito de ser responsabilizado por seus atos anti-sociais de quaisquer natureza, pois isto faz parte de seu processo educacional, que mais uma vez deve contar com a intervenção da família, da sociedade e do Poder Público, devendo ser voltado ao seu pleno desenvolvimento bio-psicossocial e ao seu preparo para o exercício da cidadania.
O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao contrário do que se apregoa, tem como proposta a responsabilidade integral do adolescente por seus atos anti-sociais, de forma muito mais completa e adequada que a legislação penal, não raro permitindo que o adolescente receba um tratamento mais rigoroso do que lhe seria destinado fosse penalmente imputável (e as estatísticas de unidades como as “Febem” estão aí a demonstrar).
Se pararmos para refletir, não será difícil perceber que a maior falha não está na lei, mas sim no seu “sonoro” e inescusável descumprimento, com a pura e simples omissão do Poder Público em desenvolver, em parceria com a sociedade e com as famílias dos adolescentes envolvidos na prática de infrações penais, um verdadeira política sócio-educativa, consistente em programas de prevenção, proteção e sócio-educativos integrados numa verdadeira “rede” de atendimento, que combata a violência envolvendo crianças e adolescentes, tanto na condição de autores quanto vítimas, em suas origens, e não se limite à pura e simples repressão policial e/ou ao recrudescimento do tratamento legal a eles dispensado, solução que, comprovadamente, em relação aos adultos já se mostrou absolutamente ineficaz na redução dos índices de violência no País, como está aí a demonstrar a chamada “Lei dos Crimes Hediondos”, proclamada nos idos de 1990 como a “panacéia” para crimes como seqüestro, latrocínio, homicídio qualificado que, como sabemos, nem por isto deixam de aumentar a cada dia.
Evidente que a efetiva e integral implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente se constitui numa solução muito mais complexa e dispendiosa que a singela redução da idade penal, pois reclama uma completa reestruturação do Estado para fazer aquilo que desde 1988 a Constituição Federal determina: priorizar a criança e o adolescente em todos os programas e ações de governo. É ela, no entanto, sem a menor sombra de dúvida muito mais eficaz e duradoura que a singela redução da idade penal, que apenas fará abarrotar ainda mais nossas cadeias e penitenciárias, negando em definitivo a nossos adolescentes qualquer possibilidade de recuperação e futuro, para a desgraça da própria sociedade brasileira, que um dia os receberá de volta – e ainda jovens, não se iludam – porém agora completamente formados nas hostes do “PCC” ou organização criminosa que o valha, sem qualquer opção que não a prática de novas infrações.
Se todos os argumentos acima não bastassem, devemos ainda lembrar que ao defendermos a redução da idade penal, não o estamos fazendo apenas para adolescentes despossuídos e marginalizados pela omissão estatal como o autor da infração acima referida, mas também para nossos irmãos caçulas, filhos e netos, que queiramos admitir ou não, amanhã poderão se envolver com a prática de infrações penais, e se o fizerem levados por fatores que somente a condição de adolescente (que um dia já ostentamos, nunca é demais lembrar) explica, seguramente gostaríamos de vê-los devidamente considerados.
Assim sendo, se queremos verdadeiramente enfrentar os problemas que afligem nossa juventude e, em situações extremas (e felizmente raras, como as estatísticas estão a demonstrar), levam a episódios lamentáveis como o acima mencionado, longe de defendermos ou nos mobilizarmos no sentido da redução da idade penal no Brasil, devemos nos mobilizar pela integral implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente e de todos os mecanismos nele previstos para prevenção e atendimento especializado de crianças e adolescentes acusados da prática de infrações penais.
E se há alguém a responsabilizar, por sua omissão em cumprir aquilo que a lei e a Constituição Federal determinam, estes são os nossos governantes, aos quais caberia, em parceria com a sociedade, a elaboração e a implementação de uma verdadeira política sócio-educativa que contemplasse um atendimento condigno à nossa juventude, com um enfoque prioritário em seu processo educacional e na busca de alternativas de vida que lhe conduzam um futuro promissor, o que por certo irá beneficiar toda a sociedade.
A proposta de redução da idade penal, portanto, no atual contexto, não passa de uma manobra diversionária e populista, que não traz qualquer solução ao problema da violência no Brasil, servindo de uma cômoda “cortina de fumaça” para que os maus governantes continuem a descumprir a lei e a Constituição Federal de forma acintosa, deixando de tratar a criança e o adolescente com a absoluta prioridade que, não por mero acaso ou deleite do legislador, lhes é destinada.
Murillo José Digiácomo
é promotor de Justiça, vice-coordenador estadual da Associação Brasileira dos Magistrados e Promotores de Justiça – ABMP, no Estado do Paraná.