Tema ainda incipiente na doutrina, mas que vem sendo apreciado com certa frequência pelos tribunais[1], diz com a recuperação judicial requerida em litisconsórcio por sociedades empresárias em crise. A Lei 11.101/05, não contém qualquer dispositivo a respeito da eventual possibilidade de recuperação judicial requerida em litisconsórcio por empresários em crise, apenas fazendo constar: “poderá requerer a recuperação judicial o devedor que,…” [art. 48]. Com efeito, o Tribunal de Justiça de São Paulo vem esposando entendimento no sentido de que caso não é de recuperação judicial [i] quando a hipótese deixa se amoldar ao comando do art. 265 da Lei 6.404/76 ([que trata do assim chamado grupo societário] aplicável, por analogia, às sociedades limitadas), bem como [ii] quando as requerentes estão sediadas em comarcas e Estados distintos. Para o tribunal, não basta a presença de sócio majoritário nas duas sociedades para que se tenha presente a idéia de grupo econômico. Por outro lado, existindo credores e empregados diversos, e relativos às duas [ou mais] entidades mergulhadas em crise, cabe a facilitação de sua presença em atos assembleares. Em tais condições descabe falar em litisconsórcio ativo facultativo. O assim denominado grupo empresarial não convencional, ou grupo de fato[2] justamente por não se amoldar de forma alguma ao regramento contido no art. 276 da Lei 6.404/76, e pela inexistência de convenção quanto a direitos e obrigações recíprocas das participantes, não se pode valer dos termos da Lei 11.101/05 [segundo o tribunal], para fins de reorganização [judicial ou extrajudicial][3]. O aspecto relevante para estabelecer a distinção entre o grupo não convencional e o convencional é justamente o relativo à convenção formal [art. 265 da Lei 6.404/76], sendo que nesta [a convencional] as sociedades participantes perdem sua individualidade estratégica e administrativa[4]. Com efeito, Modesto Carvalhosa conceitua o grupo convencional como um conjunto de companhias sujeitas a um controle comum, que, mediante convenção formal, visam a concentrar, sob a direção autônoma do grupo, a política de administração, os fatores de produção, o patrimônio e os resultados (lucros), mantendo cada uma das pactuantes a sua ‘formal’ personalidade jurídica[5]. Portanto – o denominado “grupo não convencional” – dadas as características e peculiaridades elencadas, deixa de se valer dos termos da Lei 11.101/05, no que diz exclusivamente com a reorganização, mas de todo evidente que inexiste qualquer impedimento a que se decrete a falência de uma das participantes do grupo e os efeitos jurídicos sejam espraiados a outras entidades, dado o caso concreto e observância do devido processo legal.
Não obstante os termos das decisões até aqui proferidas, o pensamento ora esposado é divergente. Mesmo que se verifique a presença do art. 265 da Lei 6.404/76 – grupo formal -, também não há qualquer possibilidade de as sociedades empresárias ingressarem com recuperação judicial de forma litisconsorcial. Com efeito, não se desconhece a finalidade precípua da lei: tentativa [apenas tentativa] de recuperação da atividade econômica organizada e retorno efeito ao mercado, tal como consta do art. 47. Também não se coloca em degrau inferior os princípios basilares da Lei 11.101/05 e, por outro lado, não se desconhece o fato – verificável em vários dispositivos constantes da lei[6] – de que tal regramento jurídico conta com forte influência do interesse financeiro[7], sendo não menos certo que tal influência pode redundar em desprestígio do próprio texto e insucesso na empreitada reorganizacional. Entrementes, com uma simples leitura do texto legal em comento, sem jamais desprezar o norte buscado – superação da crise e preservação da empresa – parece inexistir qualquer possibilidade jurídica à formação de litisconsórcio ativo facultativo, ao contrário do que até aqui vem entendendo a jurisprudência.
E as questões que se pretende apresentar ao debate não ficam estreitas aos limites da competência [art. 3º da lei] ou análise do art. 265 da Lei 6.404/76 para se definir se cabe ou não o litisconsórcio. Crê-se, pois, que o debate deve seguir outras linhas, bem claras e definidas. Ingressando na arena judicial da recuperação credor e devedor nem sempre possuem interesses convergentes [escopo, em tese: superação da crise, pagamento das dívidas e preservação da empresa]. É certo que os credores trabalhistas detém um certo “privilégio” na seara reorganizacional [art. 54] e buscam, além do recebimento das verbas que lhes são devidas, a manutenção da atividade econômica organizada, garantindo assim, e em última análise, o próprio emprego. Portanto, o norte do trabalhador é de se manter atuante na atividade em crise. Os interesses de fornecedores e credores com direito real de garantia obviamente são outros, e bastante claros: buscam receber em menor espaço de tempo tudo o que lhes é devido, e não se interessam pelo futuro da atividade econômica em crise. Destarte, nem sempre ocorrerá a convergência de interesses nas três classes de credores [art. 41], classes essas que detém o poder do voto quanto ao plano reorganizacional apresentado. A falta de coerência quanto ao aspecto “voto” é mais do que gritante, e coloca em sério risco o interesse da classe de trabalhadores quando das deliberações. São eles [os trabalhadores], sem sombra de dúvidas, os que mais sentirão os efeitos da crise empresarial, pois, além da incerteza quanto o recebimento do que lhes é devido, não possuem qualquer garantia de emprego, o que preocupa em tempos de inflação e época de desemprego. Enquanto o trabalhador busca preservar o próprio emprego – torcendo pela rápida solução da crise – e aguarda o recebimento de seus haveres, os credores [especialmente aqueles que detém garantias reais] nem sempre participam da mesma torcida [detém instrumentos mais eficazes para recebimentos de seus créditos na falência]. Visam, além do imediato recebimento de seus haveres, afastar eventual poder de barganha do devedor, imperando, inexoravelmente, a questão financeira.
Portanto, uma primeira conclusão é possível: nem sempre se verifica o assim denominado interesse social na arena estabelecida pela Lei 11.101/05.
Admitindo-se, apenas em argumento, a possibilidade de litisconsórcio ativo, certamente que as recuperandas apresentariam um único plano reorganizatório, tudo com arrimo no art. 53 da lei de regência. O cumprimento de todas as exigências ali elencadas já se mostra no mínimo complexo, e lembre-se que a demonstração da viabilidade econômica é relativa a todas as entidades em crise; deveria o plano abarcar todos os credores dos empresários, o que também se mostra no mínimo complicado, até porque [i] credores trabalhistas das recuperandas ficariam na classe I, o mesmo sendo dito em relação aos demais [vide arts. 41 e 45]; [ii] de todo evidente que a crise de um empresário pode não ser exatamente a mesma de outras entidades pertencentes ao mesmo grupo econômico, e isso dificulta até mesmo a elaboração de plano único. Mais do que isso tudo, [iii] a sorte dos credores da mesma classe e relativos a um empresário poderá não ser a mesma em relação aos credores do outro devedor mergulhado em crise, em caso especialmente de falência superveniente [art. 73]; [iv] poderá um empresário possuir mais dívidas trabalhistas que o outro, ou, principalmente, possuir dívidas com garantias reais bem mais elevadas que o outro, e isso tudo pesa [e muito] no fatídico momento do voto, sem descuidar, uma vez mais, da total disparidade quanto a forma de tal voto, prevista no art. 45. Com efeito, uma entidade em crise poderá possuir credores potenciais [credores com garantia real, com verdadeiros privilégios] e o outro empresário possuir mais credores trabalhistas [estes sim sem qualquer privilégio]. Isso basta para demonstrar o total desequilíbrio da balança e a inviabilidade de se pensar em recuperação litisconsorcial. Além desses aspectos[8], cabe também colocar em relevo a situação dos próprios credores que, além de nem sempre velarem pelo mesmo interesse, poderão ser compelidos a assumir maiores encargos, encargos esses que deveriam ser direcionados a credores desta ou daquela entidade em crise. Noutros termos, admitir litisconsórcio na seara recuperacional é descuidar da firme possibilidade de criação de benefícios a credores em detrimento de outros, e esse não é o escopo da lei e vai de encontro aos princípios que regem o instituto. Portanto, pelo simples fato de que os credores das recuperandas litisconsortes não possuírem a mesma sorte e, principalmente, os mesmos interesses [credores trabalhistas versus credores com garantia real] é que se afirma pela impossibilidade jurídica de litisconsórcio ativo em sede reorganizacional.
- [1] A propósito, alguns julgados do TJSP: AgInst. 569.351-4/6-00, rel. Des. José Roberto Lino Machado, julg. 19/11/2008; AgInst. 604.160-4/8-00, rel. Des. Pereira Calças, julg. 04/03/2009; Apelação 625.206-4/2-00, rel. Des. Pereira Calças, julg. 09/06/2009; AgInst. 645.330-4/4-00, rel. Des. Pereira Calças, julg. 15/09/2009; AgInst. 994.09.283035-5, rel. Des. Romeu Ricupero, julg. 06/04/2010; AgInst. 990.10.188755-0, rel. Des. Romeu Ricupero, julg. 19/10/2010.
- [2] CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 4º Volume, Tomo II, Artigos 243 a 300, 2ª edição. São Paulo:Saraiva, 2003, p. 12.
- [3] Mas poderá ocorrer a falência [unificada], considerando a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
- [4] CARVALHOSA, Op. cit., p. 12.
- [5] Op. cit., p. 314. Grifo constante do original.
- [6] Basta ler com atenção o contido nos artigos 41, 45 e 58 dentre outros.
- [7] O Brasil assumiu, perante o FMI, o compromisso de aprovar novo texto normativo voltado à garantia dos direitos dos credores e fortalecer o sistema de garantias [CLARO, Carlos R. Revocatória Falimentar, 4ª edição. Curitiba: Juruá, 2008 pp. 287 e 289.
- [8] E há muitos outros como, por exemplo, a situação no mínimo inusitada de que um único administrador judicial terá a incumbência legal de fiscalizar duas ou mais sociedades empresárias em crise, o que é no mínimo delicado, complexo e dispendioso. Sim, um único administrador judicial para exercer sua função em relação às recuperandas, pois no mínimo seria absurda a possibilidade de mais de um órgão da recuperação em único processo. É de todo incoerente mandar processar a recuperação judicial de grupo econômico, quer pela total incompatibilidade com os termos da lei, quer pela impossibilidade material de se levar a termo processo de tal grandeza. O fracasso certamente ocorreria.
Carlos Roberto Claro é Advogado em Curitiba. Mestre em Direito pelo Unicuritiba, professor de Direito Empresarial na Universidade Positivo.