Ao folhear um de meus velhos livros esquecido no fundo da estante, em cuja capa o tempo deixou fundas marcas, descobri um texto incomum, que não hesito em reproduzir.
Receita paraseduzir leitores
Ingredientes
Uma criança em ponto de escuta atenta;
Um livro atraente o quanto baste;
Um local com medidas suficientes de conforto;
Um adulto leitor;
Uma boa dose de vontade de formar leitores;
Uma narrativa envolvente e em escrita criativa.
Modo de fazer
Em qualquer lugar em que seja possível a concentração, deixar à vontade a criança – ela pode sentar no chão, na almofada, no colo do adulto -, abrir com encantamento e segurança o livro e principiar a ler, valorizando o sentido geral do texto e das palavras. Não esquecer de olhar nos olhos da criança sempre que possível, incutindo neles o brilho do próprio olhar do adulto. Deixar lentamente as palavras penetrarem o imaginário, evocando sensações, imagens, cheiros, o roçar da pele sobre objetos, os sons musicalizando o ouvido, os espaços de silêncio carregados de sentido.
Sem pressa, viver o momento da leitura como a possibilidade da comunhão de sentimentos humanos identitários.
Terminada a leitura, não cozinhar perguntas nem levar ao forno das mensagens e conselhos para a vida. Deixar a massa do imaginário descansar e o fermento das sensações atuar.
Se o resultado produzir os efeitos esperados e for bem sucedido, prepare-se para repetir a receita muitas e muitas vezes, ao dia, ao longo da semana, nos meses dos anos felizes que virão.
Não aprendi esta receita com minha avó. E sim com o tempo, a minha história e profissão. Com ela pude alimentar crianças, adolescentes, adultos. E continuo preparando essa poderosa mistura para famintos das mais variadas fomes.
Recentemente, no momento da confraternização ao final de mais um curso de capacitação de educadores, ouvi novamente e com muita alegria o agradecimento comovido de uma professora participante, expresso numa frase que considerei sincera: "Obrigada por me fazer sentir criança novamente!".
Pode soar estranho a leitores menos habituados que, num curso destinado a professores experientes e já graduados, o fato de reencontrar a infância seja considerado positivo. Supõe-se que a formação continuada objetive aprofundamento e atualização de informações, teorias e práticas. Esteja, enfim, direcionada para o aperfeiçoamento profissional.
Que práticas justificaram essa inversão, esse mergulho numa máquina do tempo, que engendrou a magia da volta ao passado? Não hesito em responder: foi a receita da leitura significativa de textos literários igualmente significativos.
É recompensador desacomodar pessoas ao mostrar o quanto a literatura pode, e integra, a vida diária, ajuda a compreender o mundo, a existência e o ser humano, criando espaços para navegações interiores e inquéritos sobre o exterior.
Compreender os escritos literários é uma forma de conjuração da inteligência para obter a independência do pensamento. Aos professores preocupados com o destino da leitura (o que fazer? como fazer? como exibir esse fazer?), basta estimular a memória de seu percurso de leitores ao longo da vida, e pontuar esse percurso com narrativas e poemas que exemplificam, polemizam e despertam lembranças afetivas, para que o professor se descubra, ele também, em estado de contemplação admirada e sensibilizada, como as crianças. Contemplar é reunir tempo e templo. É destacar um momento de ócio afetivo para viver virtualmente narrativas e imagens novamente crianças.
A literatura infantil, segundo Ana Maria Machado, é aquela que também pode ser lida por adultos. Só quem ouviu os suspiros e ohs exclamativos de adultos conquistados por textos infantis de qualidade, entende o que significa descobrir a criança, que acreditávamos morta em nós, e senti-la reviver, renascer, voltar a ser.
O cidadão, a que almejamos em qualquer projeto de educação, começa na consciência de si próprio, de suas potencialidades e afetividades, na sensibilização para o outro e para a beleza, que todo texto literário significativo estimula, provoca, desencadeia. "Navegar é preciso", segundo vozes antigas sopraram aos ouvidos de Fernando Pessoa. Navegar entre os escritos é buscar "em que espelho ficou perdida/ a minha face", para que, só então, possa compreender, ainda e sempre com Cecília Meireles, que "A canção é tudo. / Tem sangue eterno a asa ritmada. / E um dia sei que estarei mudo:/ – mais nada."