O aumento de 90,7% no salário dos parlamentares vai criar uma situação legal questionável: de cada quatro congressistas, um passará a ganhar acima do teto fixado pela Constituição. Levantamento sigiloso feito pelas cúpulas do Senado e da Câmara mostrou que aproximadamente 150 deputados e senadores – um quarto do Congresso – recebem hoje aposentadorias do serviço público, além do que já ganham como legisladores. Em fevereiro, quando o salário do parlamentar atingir o teto de R$ 24.500, os rendimentos adicionais farão com que esses parlamentares passem a receber do Estado mais que o teto constitucional.
Proibido pela Constituição, esse acúmulo de benefícios foi legalizado na surdina pelas Mesas Diretoras das duas Casas há um ano, permitindo que dezenas de parlamentares furem o teto. É a chamada institucionalização do ‘teto dúplex’, como os próprios parlamentares – de maneira bem-humorada – apelidaram esse privilégio.
O artigo 37 da Constituição estabelece explicitamente que a soma de todas as remunerações dos servidores públicos ou de ocupantes de cargos eletivos não pode ultrapassar o salário mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa soma estão incluídas as ‘vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza’, como horas extras e gratificações.
A regra constitucional não está sendo observada por nenhum dos órgãos do Legislativo, incluindo o Tribunal de Contas da União (TCU). Além de permitir que senadores e deputados acumulem o recebimento de aposentadorias, elevando os vencimentos acima de R$ 24.500, resoluções aprovadas pelas Mesas também beneficiam servidores de alto escalão, ao excluir do cálculo do teto as parcelas referentes a auxílios financeiros (como refeição e creche), comissões e horas extras.
Graças a essas manobras, a Diretoria Geral registra que existem apenas 4 dos 13.800 funcionários do Senado com rendimento acima de R$ 24.500. Todos aposentados. Só eles têm a parcela que excede o teto cortada do contracheque – no valor máximo de R$ 2.800, segundo o diretor-geral, Agaciel Maia.
A Câmara não informou quantos dos seus servidores furam o teto, mas há casos como o do secretário-geral da Mesa, Mozart Viana, que se aposentou da Casa e foi contratado como comissionado logo em seguida, acumulando hoje uma remuneração total de R$ 35,7 mil.
A burla à Constituição ocorre desde 1998, quando foi promulgada a reforma administrativa que estabeleceu o atual teto. Há três anos, na presidência de João Paulo Cunha (PT-SP), a Câmara tentou operacionalizar os cortes, determinando que todos os deputados e servidores se recadastrassem, informando se acumulavam outros salários ou proventos da administração pública. A reação contrária foi imediata, dando origem a ‘um sem-número de ponderações por parte de alguns possíveis atingidos’, segundo informou o diretor-geral da Câmara, Sérgio Sampaio, em resposta a ofício do Ministério Público Federal, de junho de 2004.
Um dos primeiros a se queixar, conforme documentos obtidos pelo Estado, foi o jurista Célio Borja, que acumula duas aposentadorias – uma de ex-ministro do Supremo e outra de ex-deputado, beneficiário do extinto Instituto de Previdência dos Congressistas. Como já recebia o teto pelo STF, Borja reivindicava o direito de continuar recebendo a aposentadoria de parlamentar, argumentando que o limite estabelecido pela Constituição não era auto-aplicável, estando pendente de ‘atos normativos e executórios do STF e até mesmo de lei’.
De acordo com procuradores da República, o texto constitucional é claríssimo quando diz que ‘cumulativamente ou não’ as remunerações não podem ultrapassar o teto. Mas os beneficiados tentam evitar a perda de salário alegando que não há regulamentação sobre qual dos órgãos pagadores deve efetuar o corte. Os procuradores lembram que às vezes existe duplicidade de contracheque em um mesmo órgão.
‘Era para ser um teto único, com ninguém ganhando mais do que um ministro do Supremo. Mas acabou se transformando em uma clarabóia’, afirma o deputado Moreira Franco (PMDB-RJ), relator da reforma administrativa no governo Fernando Henrique. ‘O teto nunca foi regulamentado por diversas razões. A principal é que o extrato superior da administração pública dos três Poderes ganha acima de R$ 24.500’, argumenta o deputado, que abdicou da aposentadoria de ex-governador do Rio.
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