O presidente da Câmara, deputado Severino Cavalcanti, ainda sentindo os eflúvios do transbordante banho de celebridade a que teve direito pelo nocaute aplicado no candidato do PT e, presumidamente, da aliança política do presidente Lula no Congresso, transformou a promessa de aumento de 67% nos salários dos deputados em passarela para desfilar seu picaresco garbo de sertanejo esperto.
Aquele que cumpre a palavra empenhada, que não deixa os companheiros na chuva ou no sereno. Autêntica figura esculpida na pedra tosca do comportamento dos homens do agreste, como se brotasse das páginas duma rapsódia armorial de Ariano Suassuna, o maior romancista brasileiro vivo.
As evoluções aparatosas de Severino repercutidas e ampliadas pela mídia sempre em busca de assuntos espetaculares, deleitaram pauteiros, editores e colunistas políticos desde a eleição. O deputado recebeu o tratamento a que tinha direito, inclusive com a foto tirada no churrasco de Goiânia, logo após a chinelada de 300 votos em Luiz Eduardo Greenhalgh e companhia, na qual exibe monumental umbigo para ninguém botar defeito.
A bandeira de Severino pelo aumento de 67%, elevando o salário dos deputados para R$ 21,5 mil, levou o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Nelson Jobim, tido pelas más línguas como ?líder do governo FHC na mais elevada instância da Justiça? e, em cima desse episódio, fazendo jus à designação de ?rei do alto clero?, no afã de garantir logo o benefício, a propor equiparação salarial do presidente da República, ministros e congressistas. Um primor de legislação em causa própria.
Ocorre que a proposta indecente, apesar de partir de ilustres florões da República, causou imediata repulsa de parte de muitos congressistas e, por extensão, da sociedade. O intérprete credenciado foi o senador Renan Calheiros, presidente do Senado, cujo torpedo afundou o artifício inspirado por Jobim, de oficializar o aumento por meio de medida administrativa das mesas da Câmara e do Senado, sem votação no plenário.
O contraponto à altura da vocação por altos salários, demandada sem o menor pejo, veio do presidente Lula, ao propor aumento linear de 0,1% para o funcionalismo público federal. Pode não ter sido essa a intenção presidencial, mas a notícia causou também seu impacto rumoroso e, mais, tornou acintosa a proposta de Severino, endossada pelo presidente do STF.
Aliado por inteiro do presidente Lula, o senador Renan Calheiros foi ungido com a presidência do Senado em troca do esforço de pacificar o PMDB, tarefa cada dia mais complicada face à divisão do partido em dois blocos, um a favor e outro contra o governo. Aconselhado por Jobim, o presidente da Câmara buscou compartir com seu par da Câmara Alta a paternidade da proposta, e como todos seriam abonados com um salário digno da inveja de milhões de brasileiros de segunda classe, era a cereja no creme.
Severino não contava com a negativa de Calheiros e o caldo entornou. O presidente do Senado, não por ser um virtuoso, valeu-se também do momento propício para reivindicar seu quinhão do brilho dos holofotes e sepultou o despautério do aumento, qualificando-o de irreal e incompatível com a atual situação econômica. O colega da Câmara, usando luvas de pelica, afirmou que sua atitude seria diferente, mas ensacou a viola.
Por enquanto, o aumento de 67% nos salários dos congressistas deverá permanecer debaixo da linha d?água, hibernando, diriam alguns, até nova oportunidade para o brilhareco severino. O apetite demonstrado pelo estadista pernambucano nessa primeira rodada também deverá ficar em repouso, pronto para novos botes. E eles virão.