Sim, houve exagero: de quem disse que uma ofensa racial durante uma partida de futebol não é nada sério, que o calor do momento justifica esse tipo de ofensa, que muitos jogadores já foram ofendidos e nada aconteceu, que tudo ?foi armado?, que a prisão não passou de preconceito dos brasileiros contra os argentinos, que o fato foi transformado num grande espetáculo etc. Na verdade, ofender qualquer pessoa, sobretudo por razões raciais, constitui o crime de injúria racial (Código Penal, art. 140, § 3.º), que é punido com pena de reclusão de um a três anos. Como o limite máximo supera a dois anos, não se trata de infração de menor potencial ofensivo. Logo, admite-se flagrante, que pode ocorrer no momento da ofensa ou logo após. A prisão em flagrante, portanto, foi correta.
Também o enquadramento típico-penal foi acertado. Cuida-se, desse modo, de crime comum do Código Penal, não de racismo (tal como configurado na lei brasileira – Lei 7.716/89). São crimes de racismo (nos termos desse diploma legal) os que afetam uma coletividade de pessoas, impedindo-as de exercer direitos ou liberdades. Ofensa a uma pessoa determinada (específica), ainda que por razão racial, não constitui o crime de racismo vigente no Direito brasileiro, sim, crime contra a honra de uma vítima concreta.
Houve muito exagero então, como se vê, em quem manifestou no sentido de ter ocorrido crime de racismo, que é imprescritível e inafiançável, consoante mandamento constitucional. Agiu corretamente o juiz, entendendo que o crime cometido era afiançável.
Mas qual foi o maior e mais chocante exagero? Foi o tempo que se gastou para se viabilizar a liberdade do jogador argentino Desábato: 37 horas! A máquina judiciária punitiva demorou quase vinte horas para entrar em funcionamento e deferir a liberdade mediante fiança. Demora impressionante! Justiça tem que ser como hospital: plantão 24 horas.
A bem da verdade,plantão no Judiciário até que (formalmente) tem, o que faltam muitas vezes é a estrutura e o espírito plantonista. Plantão verdadeiro é o que está sediado num determinado lugar, de conhecimento público, portas abertas e luzes acesas, isto é, 24 horas! Como o crime de injúria racial é punido com reclusão, o delegado de polícia não tinha (e não tem) poder para conceder fiança. Só juiz podia fazê-lo. E foi feito, mas a máquina judiciária punitiva só atuou quase vinte horas depois!
Pior: no começo da noite chegou-se a falar que o banco estava fechado e que se devia aguardar o dia seguinte, até o banco abrir: o absurdo ficou escancarado! Eu não acreditei no que estava ouvindo e dizia, pela Rádio Jovem Pan, que a liberdade humana não poderia ficar condicionada ao horário bancário! Isso seria uma aberração! No dia seguinte descobriu-se que o problema não era bem esse, sim, que o dinheiro da fiança não estava disponível, que teria havido dificuldade para obtê-lo etc.
De qualquer modo, em matéria de liberdade, temos que imitar os bons exemplos da civilização: em qualquer país em que a liberdade (dos pobres ou ricos, dos mortais ou imortais, das prostitutas ou dos jogadores de futebol, do cafetão ou do desembargador, do brasileiro, do argentino ou de qualquer outra pessoa) é respeitada como valor essencial do Estado de Direito, sempre há um juiz 24 horas de portas abertas para reparar eventuais constrangimentos ilegais. Tudo deve ser resolvido prontamente.
Nesse nosso singular país, entretanto, a concretização da liberdade mediante fiança demora quase quarenta horas (ou mais); o exame de um habeas corpus hoje nos nossos tribunais não acontece antes de 30 a 60 dias: réu preso, injustamente preso (muitas vezes), tem que aguardar até 60 dias ou mais para ver seu pedido de habeas corpus julgado. O desprezo da máquina judiciária punitiva brasileira (da burocracia) com a liberdade revela muito atraso civilizatório.
Essa maneira tupiniquim de ?proteger? os direitos humanos fundamentais merece reflexão (e revisão). A única coisa que nos consola é saber o quanto ainda existe para se fazer nessa área (e em tantas outras). Os que se cansam rapidamente, logo desistem. Os que não desanimam têm muito que fazer, inspirando-se (talvez) no poeta espanhol Antônio Machado: ?caminante no hay camino, se hace el camino al andar?.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito penal pela USP, secretário-geral do IPAN (Instituto Panamericano de Política Criminal), consultor e parecerista e fundador e presidente do IELF PRO OMNIS: 1.ª Rede de Ensino Telepresencial da América Latina – www.proomnis.com.br