Convido você a recordar o momento e as circunstâncias em que conheceu, pela primeira vez, um livro. E o leu. Lembra-se da cor, do formato, da capa, do cheiro peculiar? Onde terá ido parar esse objeto mágico, que abriu as portas da percepção para a entrada de letras, idéias e prazeres?
………..Pausa para a abertura dos arquivos da memória………
Lembrou?
O que restou daquela aprendizagem, daquele maravilhamento? Uma estante repleta de livros? A compulsão de comprar esse produto sempre novidadeiro? A necessidade inesgotável e permanente de ler? A persistente consciência de culpa por não interagir com eles na freqüência necessária ou desejada? A indiferença atual, ou mesmo, o menosprezo pela inutilidade das leituras e dos livros?
O que restou?
Uma das experiências mais prazerosas em qualquer trabalho de capacitação docente, em que estive envolvida nos últimos anos, tem sido a de ouvir relatos de rituais de iniciação à leitura de livros. Os olhos fecham-se, concentrados, enquanto viajam mundos interiores adentro da memória, na tentativa de recuperar não apenas os fatos, mas a sensação que eles propiciaram. Emergem, inevitavelmente, associações de pessoas, intenções, afetos, quereres e objetos, em cirandas infantis, em rodas de sentidos e símbolos. A recuperação desse instante revela, subitamente, ao adulto a força significativa daquele rito, depois do qual adentramos o paraíso e o inferno dos leitores. Os risos e suores, as alegrias e temores, as vitórias e frustrações desfilam, num átimo de tempo, no painel da memória, amadurecendo a consciência de que, a partir daquele momento revelador, nunca mais fomos os mesmos.
É preciso viver a graça de observar o brilho dos olhos rememorativos, de sentir as palavras adensarem-se de saudade e afeto, de tocar indiscretamente aquela história pessoal que vibra, retorna, cresce, desnuda-se impudicamente na força do relato. Pais e parentes, amigos e mestres, livros e histórias, poemas e cantigas, terrores e amores jorram, em ouro líquido, dos lábios dos recordantes. Alguns descobrem-se, outros desdobram-se e os ouvintes respondem silenciosamente, em ecos interiores, com suas histórias particulares e todos irmanam-se na lembrança de letras e livros.
Esse momento inaugural e outros igualmente poderosos estão recuperados e registrados em duas autobiografias, que tenho sob os olhos neste instante. Em caixa delicada e rústica estão o texto de José Mindlin, Memórias esparsas de uma biblioteca e o de Cristina Antunes, Memórias de uma guardadora de livros, publicação conjunta da editora Escritório do Livro e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
José Mindlin tem, em nossa pobre história brasileira do livro, a responsabilidade de repor no dicionário cultural de nosso tempo o termo bibliófilo, com todos os méritos dele decorrentes: a paixão pelos livros, a proteção ao patrimônio cultural do Brasil, a generosidade de colocar à disposição de pesquisadores uma coleção rara, rica, numerosa e de altíssima qualidade. Além de sua história pessoal de leitor (verificável em ?Cresci entre quadros e livros? e ?Os anos que passei no Estado?), conclama a presença de seus pares, bibliófilos e editores, em comunhão de bibliotecas e paixão. Em apêndice, uma valiosa, embora breve, história do livro no Brasil.
Atravessa todo o volume uma imensa erudição, apresentada em linguagem adoçada pela vida de leituras prazerosas e das emoções propiciadas pelo convívio com os livros. Como um romance.
Cristina Antunes também relata seu percurso profissional entre livros, do curso de Pedagogia à administração da biblioteca de José Mindlin. Revê, também, sua trajetória pessoal, marcada por uma infância de livros e leituras absorventes, de tal maneira que ?o mundo podia cair que eu não via? (p.23). O mundo não caiu porque esteve escorado no trabalho de organização e preservação de acervos, até a descoberta de que ?uma biblioteca é um lugar de convergências?.
Duas histórias de vida entre livros a reforçar a importância da leitura para a sociedade e a história do País. Dois relatos da memória que, além de compor um retrato da vida cotidiana de grupos sociais afetados pelo conhecimento registrado em papel, migram da estante rotulada ?nostalgia? para o acervo da ?história?. E, de lá, emitem luzes de exemplaridade, entusiasmo e emoção para os leitores ávidos do encontro com seus iguais. Como aqueles educadores a lembrar de seu primeiro livro e das primícias do amor intelectual.
Referência: MINDLIN,
J. Memórias esparsas de uma
biblioteca. & ANTUNES, Cristina. Memórias de uma guardadora de livros. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo;
Florianópolis, SC: Escritório do
Livro, 2004. Pedidos para
confrariadapalavra@terra.com.br