Quando a justiça não é cega (e a moral passa ser indústria)

Acompanhada da mãe, a moça foi ao Clube e na entrada foi barrada por não estar trajada de acordo para o baile de gala. A mãe protestou, houve discussão, fez escândalo, o tempo “esquentou” até que as duas acabaram entrando e dançaram a noite inteira. No dia seguinte, foram à Justiça pedindo indenização por dano moral, alegando constrangimento, vergonha e humilhação! Um outro cidadão teve o cartão de crédito bloqueado por falta de pagamento de suas contas. A partir daí “fabricou” uma série de provas e situações para demonstrar que “não pode efetuar compras, em razão do bloqueio do cartão”. Diante das alegações contraditórias e circunstâncias nebulosas, “entendo que a condenação dos réus na forma requerida pelo autor constituir-se-á em fomento à “indústria” do dano moral que merece ser combatida, pois perniciosa à sociedade”, decidiu o juiz

Mas no caso da moça que foi barrada no baile vale a pena ler o que disse o juiz: “No Brasil, morre por subnutrição uma criança a cada dois minutos, mais ou menos. A população de nosso planeta já ultrapassou seis bilhões de pessoas e um terço deste contingente passa fome, diariamente. A miséria se alastra, os problemas sociais são gigantescos e causam a criminalidade e a violência generalizada. Vivemos em um mundo de exclusão, no qual a brutalidade supera com larga margem os valores humanos. O Poder Judiciário é incapaz de proporcionar um mínimo de Justiça Social e de paz à sociedade. E agora tenho que julgar um conflito surgido em decorrência de um vestido. Que valor humano importante é este, capaz de gerar uma demanda jurídica”? E indaga o magistrado: “Moda, gala, coluna social, são bazófias de uma sociedade extremamente dividida em classes, na qual poucos usufruem da inclusão e muitos vivem na exclusão”. Mas, por imposição constitucional, “cabe ao Poder Judiciário julgar toda e qualquer lesão ou ameaça a direito”.

Ao julgar o mérito da questão, o juiz defrontou-se com o problema de enquadrar o conceito de traje de gala a rigor, vestido longo, aos casos concretos, ou seja, aos vestidos usados pelas participantes do evento. “Nesta demanda, a pessoa responsável pelo ingresso no baile entendeu que o vestido da moça não se enquadrava no conceito. A mãe e a filha entendem que sim. Como sair dessa, então! Como determinar quem tem razão? Nomear um estilista ou um colunista social para, cientificamente, verificar se o vestido portado pela moça era ou não era de gala a rigor? Ridículo seria isto”. E o juiz continua filosofando: “Sob meu ponto de vista, quem consente com a futilidade a ela está submetida. Ora, no momento que uma pessoa aceita participar destes tipos de bailes, aliás, nos quais as indumentárias, muitas vezes, se confundem com fantasias carnavalescas, não pode, insurgir-se contra as regras sociais deles emanadas. Se frívolo é o ambiente, frívolos são todos seus atos. No processo nada ficou provado que a moça, inicialmente, impedida de entrar no baile, tivesse sofrido “grosserias, ou melhor, já que se fala em alta sociedade, em falta de urbanidade, impolidez ou indelicadeza por parte dos funcionários do Clube. Apenas entenderam que o traje da moça não se enquadrava no conceito de gala a rigor e, por conseguinte, segundo as regras do baile, sua entrada não foi permitida”. Na decisão do juiz isso não gera danos morais, pois não se tratou de ato ilícito . Para quem tem preocupações sociais, pode até ser um absurdo o ocorrido, mas absurdo também não seria participar de um evento previamente organizado com regras tão estultas?”. Nos autos haviam fotografias da jovem e ao analisá-las o juiz registrou sua indignação de “ver uma jovem tão bonita ser submetida, pela sociedade como um todo, incluindo-se sua família e o próprio Clube, a fatos tão frívolos, de uma vulgaridade social sem tamanho. Esta adolescente poderia seguir nos caminhos da cultura, da literatura, das artes, da boa música. Poderia estar sendo incentivada a lutar por espaços de lazer, de saber e de conhecimento. Mas não. Ao que parece, seus valores estão sendo construídos pela inutilidade de conceitos e práticas de exclusão. Cada cidadão e cidadã é livre para escolher seu próprio caminho. Mas quem trilha as veredas das galas de rigor e das altas saciedades, data vênia, que aceite seu tempo e contratempo e deixe o Poder Judiciário cuidar dos conflitos realmente importantes para a comunidade em geral. E com esses argumentos, a bela moça foi condenada ao pagamento das custas judiciais e mais 1 mil reais de honorários do advogado.

Arnoldo Anater

é jornalista e bacharel em Direito.

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