A Constituição Federal do Brasil de 1988 dispõe sob sua égide a valorização da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/88), a solidariedade social (art. 3.º, I, da CF/88) e a isonomia ou igualdade “lato sensu” (art. 5.º, “caput”, da CF/88). Dessa forma, deve-se resguardar o ser humano e respeitar as diferenças observando que a dignidade humana precede a toda ordem social.

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Segundo José Afonso da Silva, “a Constituição vigente é mais veemente e mais abrangente na condenação nas desequiparações entre pessoas. Confere igualdade perante a lei, “sem distinções de qualquer natureza'”(1).

Ressalta-se que a tutela a todo ser humano não se restringe apenas a liberdade de viver. Deve-se viver com qualidade de vida, e viver de forma digna. A qualidade deve estar presente em todo desenvolvimento da vida de cada indivíduo.

Ao se tratar dos direitos dos transexuais, deve-se ter em mente que são pessoas que em sua vida social agem e sentem-se, em que pese sua constituição física ser masculina, como uma mulher OU vice-versa.

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Nota-se que os transexuais sofrem preconceito e discriminação na sociedade, e há uma conseqüente exclusão de tais pessoas, já que dificilmente conseguem trabalhar ou até mesmo realizarem compras, empréstimos, se hospedarem em hotéis, entre outras situações, visto que a documentação, tal como RG e certidão de nascimento, por exemplo, não condiz com a condição física e notoriedade que possuem.

O transexual merece tratamento diferenciado, convergente com o princípio constitucional da isonomia e assim, garantir o ideal de justiça social e a efetiva proteção de sua dignidade. O transexualismo consiste em um caso em que um médico após inúmeros exames (psicológicos inclusive) indica a cirurgia para adequação de sexo.

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Apesar de não ter havido alteração no Código Penal para desconfiguração de crime de lesão corporal, o próprio Conselho Federal de Medicina, conforme dispõe a Resolução nº 1652/2002, autoriza a realização de tal cirurgia, prevendo regras de procedimento para a sua realização. Importante ressaltar que a cirurgia de adequação de sexo é disponibilizada pelo Sistema único de Saúde- SUS, conforme Portaria n.º 1.707, de 18 de agosto de 2008 do Ministério da Saúde.

Entretanto, no tocante a questão referente aos transexuais submetidos à cirurgia e a necessidade de alteração do nome e estado civil (sexo) em suas documentações, não há ainda lei específica regulando a matéria.

Consta na Lei de Registros Públicos que o nome deve condizer com a teoria da aparência e a relevância que a pessoa assume no meio social, sendo possível até mesmo incluir apelidos no nome.

É obrigatória a atribuição de nome à criança quando esta nasce (art. 50 da Lei n.º 6.015, de 31 de dezembro de 1973), cabendo aos pais a escolha do nome individual, conforme o princípio da liberdade e ao nome de família conforme o princípio da veracidade.

Nota-se que o direito ao nome é híbrido, apresentando dois elementos: o público e o privado.

O primeiro tem o intuito de identificação, visando a atender ao interesse social de segurança. Já o elemento privado do nome é atributo da personalidade, ligada à autonomia da pessoa humana e, portanto, mutável.

A Lei n.º 6.015/73 Lei de Registros Públicos adotou o critério da imutabilidade do nome como regra, sendo admitida a mutabilidade apenas em casos excepcionais trazidos pela doutrina, aplicando-se a teoria da aparência e a relevância que a pessoa assume no meio social.

Percebesse ainda pelo art. 55, da referida lei, em seu parágrafo único, que é vedado o registro de prenome que exponha seu portador ao ridículo. A finalidade desta norma é proteger a pessoa. Assim, nota-se que no caso dos transexuais a manutenção do nome anterior a cirurgia resulta na exposição ao ridículo da pessoa que adequou o sexo e, portanto, é anatomicamente diferente de quando nasceu.

A intervenção cirúrgica possibilita a busca pela identidade sexual, se a intenção do legislador fora tutelar a pessoa para que essa não fosse exposta e ridicularizada. O próprio artigo 55 da Lei de registros públicos possibilita a mudança do prenome dos transexuais.

Destaca-se que não é apenas a anatomia do indivíduo que define seu sexo, mas sim, sua postura dentro da sociedade em que vive bem como sua notoriedade. A lei não pode impor barreiras para a realização da identidade sexual da pessoa.

Se o registro tem publicidade, autenticidade, eficácia, deve transparecer sua nova condição, novo sexo e novo prenome. Nota-se ainda que não basta apenas a realização da cirurgia, deve-se atentar para a realização completa da pessoa transexual, consequentemente a alteração do seu registro civil, adaptando a designação sexual e o prenome à nova situação do indivíduo, observado assim o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.

Analisando o Código Civil e a Lei de Registros Públicos à luz da Constituição Federal (artigos 1.º, III; 5.º, X), há de se concluir que é permitida aos transexuais a alteração do seu prenome. “Nenhuma justificativa serve para negar a mudança, não se fazendo necessária sequer alteração de dispositivos legais para chancelar a pretensão”(2).

No tocante a mudança de sexo e nome dos transexuais, aduz Szaniawski que a própria Magna Carta de 1988 possui princípios fundamentais que norteiam normas infraconstitucionais e, assim, “garantem o direito à autodeterminação pessoal, atuando como uma cláusula geral de comando que permite adequar à sexualidade”(3).

Logo, pouco importa que as normas que regulamentam os direitos de personalidade e identidade civil não tragam de forma expressa proteção aos transexuais, pois por princípio, todos merecem proteção.

Deve-se ter em mente que não se pode admitir qualquer forma de preconceito e marginalização na sociedade, sob pena de se violarem os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana. Não há justificativa para o sofrimento de uma pessoa que não consegue se desenvolver com autonomia e qualidade de vida, visto que todos são livres e iguais.

Notas:

(1) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 223.
(2) DIAS, Maria Berenice.União Homoafetiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 240.
(3) SZANIAWSKI, Elimar. Direitos de personalidade e sua tutela. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 164.

Tassia Teixeira de Freitas Bianco Erbano é advogada do escritório Zornig & Andrade Advogados Associados. Mestranda em Direito Econômico e Socioambiental pela PUC-PR.