Proposta de criação dos juizados de instrução nos casos de foro especial por prerrogativa de função

1. Proposta legislativa (de criação dos Juizados de Instrução e de disciplina da figura do colaborador da Justiça)

Uma proposta legislativa (um esboço, aliás) sobre a criação dos juizados de instrução poderia ser traçada da seguinte maneira:

?Art. 1.º Os Juizados de Instrução, compostos por juízes ou desembargadores, atuarão junto aos Tribunais naturais nos casos de competência originária fixada em razão da prerrogativa da função.

Art. 2.º O juiz de instrução, escolhido em lista tríplice pelo Tribunal respectivo, será nomeado pelo seu presidente.

Art. 3.º Compete ao juiz de instrução autorizar e presidir a investigação preliminar de todos os fatos que envolvem quem goza de foro especial por prerrogativa de função, observando-se, no que couber, a Lei 8.038, de 28 de maio de 1990.

Art. 4.º Todas as pessoas que possam prestar esclarecimentos sobre os fatos investigados serão ouvidas com a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Art. 5.º Ao suspeito ou indiciado que colaborar voluntariamente com a investigação preliminar dos fatos, presidida pelo juiz de instrução, desde que contribua efetivamente para a identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime bem como para a recuperação total ou parcial do produto auferido e repare os danos causados, especialmente ao erário público, serão fixadas, em negociação presidida pelo juiz de instrução, sanções alternativas à prisão, incluindo-se as previstas na lei de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992).

Art. 6.º A negociação penal será regulada pelo disposto no art. 76 da Lei 9.099/1995.

Art. 7.º O disposto no art. 5.º desta lei não se aplica aos delitos cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa.

Art. 8.º As sanções alternativas serão impostas em sentença homologatória do acordo, sem reconhecimento da culpabilidade do agente, e não serão levadas em conta para qualquer efeito penal.

Art. 9.º A sentença será registrada para o único efeito de impedir benefício idêntico no prazo de cinco anos, contados da homologação do acordo.

Art. 10 Não tendo havido negociação penal, o processo será remetido ao Tribunal competente que observará a máxima oralidade possível, podendo ser ratificados os depoimentos, declarações ou esclarecimentos prestados contraditoriamente perante o juiz de instrução.

Art. 11 Serão aplicadas em benefício do colaborador todas as medidas especiais de segurança e proteção à sua integridade física, nos termos da Lei 9.807/1999.

2. As propostas apresentadas (até agora) são equivocadas

Algumas autoridades (presidente da República, ministros, ministros das Cortes Superiores, senadores e deputados, desembargadores, juízes, membros do Ministério Público, prefeitos etc.), pela relevância das funções que ocupam, gozam do chamado foro especial por prerrogativa de função, ou seja, são julgadas originariamente por Tribunais (não pelos juízes de primeiro grau). A morosidade e impunidade, nesses casos, estão empiricamente comprovadas. Os números divulgados pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) (O Estado de S. Paulo de 6/7/7, p. A7) são os seguintes: de 1988 a 2007 tramitaram no STF 130 ações penais (resultado: nenhuma condenação); no STJ: 333 ações, sendo 5 condenados (1,5%). O mais grave problema, entretanto, não reside na existência do ?foro especial?, sim, na ausência de estrutura apropriada nos tribunais que julgam esses processos, que normalmente envolvem o delito de corrupção.

Stuart Gilman, que é especialista da ONU, disse à Folha de S.Paulo (13/8/07, p. A6) que o combate a esse delito exige tanto a eliminação do foro privilegiado como a criação de uma corte especial (corte anticorrupção). De outro lado afirmou: ?Não é a severidade da pena, mas a velocidade com que as pessoas são pegas e punidas que acaba com a noção de impunidade?.

O deputado federal Paulo Renato Souza vem sugerindo (proposta de emenda constitucional n. 115) a criação de um Tribunal Superior da Probidade Administrativa (Folha de S.Paulo de 16/8/07, p. A3), que não julgaria pessoas, mas todos os delitos contra a administração pública assim como os atos de improbidade administrativa.

As propostas descritas, embora bem intencionadas, apresentam vários equívocos. O cerne dessa específica questão não está nas regras processuais, sim, no aspecto operacional (funcional). Daí a urgente necessidade de serem criados os Juizados de Instrução, combinando-os com a figura do colaborador da Justiça.

3. Razões justificadoras da proposta

Eficiência e garantias devem ser os dois vetores que demarcam o funcionamento da Justiça criminal moderna. Se os tribunais brasileiros não contam com estrutura para a instrução dos processos de competência originária, parece muito acertada a criação do Juizado de Instrução. O juiz ou desembargador que o compõe presidirá toda instrução, atuando em conjunto com o Ministério Público e todos os demais órgãos públicos que possam contribuir para a elucidação dos fatos.

Essa instrução não pode ser presidida pelo representante do Ministério Público porque as provas orais, todas, devem ser produzidas com observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Essa providência se faz necessária para que, depois, perante o juiz natural do processo, as provas não tenham que ser repetidas, salvo quando imprescindíveis, gerando atrasos e morosidade.

Para atacar as causas da generalizada sensação de impunidade nos casos de competência originária dos tribunais o correto é retirar os ministros e desembargadores dos tribunais naturais da presidência da fase preliminar instrutória. Eles não contam com estrutura para isso e acham-se assoberbados de processos. Disso deve se encarregar um juiz (ou desembargador) integrante dos Juizados de Instrução, que existem e funcionam há séculos na Espanha e na França, por exemplo.

Um juiz (ou desembargador) dedicado exclusivamente para a instrução dos processos que tramitam originariamente nos tribunais dará a celeridade esperada. Ele presidirá toda fase instrutória e conduzirá o caso até o recebimento (ou rejeição) da peça acusatória. Uma vez recebida essa peça, envia-se tudo ao tribunal competente para o julgamento final, nos termos do procedimento acusatório oral, ou seja, as provas antes colhidas pelo juiz de instrução, sob a égide do contraditório e da ampla defesa, são apenas ratificadas perante o tribunal competente. A ampla defesa, nesse momento, tendo em vista que já foi exercida antes, somente é concretizada para aclaramento de pontos divergentes.

O tema do foro ?privilegiado? vem sendo amplamente noticiado e discutido no Brasil em razão das incontáveis ?denúncias? de corrupção (?mensalão?, ?sanguessuga? etc.) que, quase sempre, envolvem altas autoridades. Uma vez apurado um caso de corrupção, o que todos esperam é que a Justiça criminal funcione bem e que condene os culpados e absolva os inocentes. Fundamental, portanto, é que a Justiça funcione! Não importa (do ponto de vista da eficácia da Justiça) se é o órgão ?X? ou ?Y? que atua. Sobretudo para o povo em geral, pouca diferença faz se é o juiz de primeiro grau ou de um tribunal que condenou (ou absolveu) o acusado. O Judiciário tem que funcionar (o mais rapidamente possível, assegurando-se, óbvio, todos os direitos e garantias do processado).

A mais séria razão da endêmica corrupção no nosso país, dessa forma, (depois da ganância dos engomados corruptores e da falta de compostura dos corrompidos, que bem convivem com a idéia do enriquecimento fácil e ilícito), não está na existência do foro por prerrogativa de função ou na inexistência de leis penais, sim, na impunidade. É claro que a transparência na gestão pública assim como a educação são fatores preventivos de relevância ímpar (O Estado de S. Paulo de 22/7/07, p. A12). Mas uma vez que o sujeito deliberou transformar-se num criminoso, a questão agora já não é de prevenção, sim, de repressão, que vem falhando no nosso país. O Brasil inteiro ficou estupefacto recentemente quando, dentro do Senado, para resolver o imbróglio que envolvia o seu presidente, chegou-se a aventar a possibilidade de se remeter todo o assunto para o STF, sob o argumento de que ?lá as coisas não se resolvem tão cedo?. Esse quadro, muitas vezes exagerado, precisa ser alterado.

O caso ?mensalão?, aliás, bem ilustra (orienta) essa difusa ?cultura da impunidade? que reina sobretudo nas elites políticas, econômicas etc. e que deveria ser uma abominável excrescência (porém, lamentavelmente, não o é). Em 11 de abril de 2006 o procurador-geral da República apresentou denúncia contra quarenta pessoas. Somente no final de agosto de 2007 é que o STF concluir o juízo de admissibilidade da denúncia.

O erro, agora, não está no campo operacional, sim, no processual. É um absurdo sem tamanho atribuir a um ministro de tribunal ou a um desembargador a responsabilidade de se encarregar da fase pré-processual (preliminar). Quem recebe, por ano, milhares de processos para julgamento, não tem a mínima condição material de instruir a fase preliminar desses casos de foro por prerrogativa de função. De outro lado, justamente porque se trata das mais altas autoridades da república, o mais conveniente é que um juiz ou desembargador tenha competência para isso.

Conclusão: o mais pronto possível, impõe-se a instituição de um novo juizado (Juizados de Instrução), composto de juízes de primeira instância (quando a competência é dos Tribunais de segundo grau) ou de juízes e/ou desembargadores (quando a competência é dos Tribunais superiores), que deve se encarregar da fase preliminar investigatória de todos os casos de foro especial por prerrogativa de função.

O ministro (ou desembargador) que vai julgar o processo não deve assumir essa tarefa (dentre outras) por duas razões: (a) porque não tem tempo nem estrutura para isso e (b) porque, participando da investigação, fica psicologicamente vinculado ao que apurou (não tendo isenção nem imparcialidade suficiente para tomar parte do julgamento final do caso). A criação de câmaras especializadas para o julgamento dessas ações (como é o caso do Rio Grande do Sul O Estado de S. Paulo de 6/7/07, p. A9) não elimina a nossa segunda crítica acima formulada.

A solução, portanto, está na criação de um novo Juizado Especial (Juizados de Instrução), que deve se encarregar de toda fase instrutória preliminar (ou investigativa), presidindo-a contraditoriamente até o momento da admissibilidade (ou inadmissibilidade) da denúncia, depois de a defesa ter apresentado suas alegações preliminares.

4. Sanções alternativas à prisão

A figura do colaborador da Justiça pode ter bom funcionamento nos delitos instruídos pelos Juízes de Instrução. Quem colabora com a Justiça, com eficácia, seja para a identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, seja alternativa ou concomitantemente para a recuperação total ou parcial do produto auferido e ainda repara os danos causados, especialmente ao erário público, deve ser merecedor do chamado Direito premial, não se sujeitando à pena de prisão.

Não é desconhecido, no ordenamento jurídico brasileiro, o instituto da colaboração, sobretudo por meio da delação premiada, que já conta com previsão em vários diplomas legais: lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), lei de proteção das vítimas e testemunhas (Lei 9.807/1999), lei do crime organizado (Lei 9.034/1995), lei de lavagem de capitais (Lei 9.613/1998) etc. Os dispositivos legais que contemplam a delação, entretanto, sempre partem da premissa do reconhecimento da culpabilidade do réu. A proposta que estamos fazendo é de inserir a delação dentro de uma negociação penal, que não gera efeitos penais futuros contra o colaborador.

5. Proposta do dep. Paulo Renato Souza e seus equívocos

Para eliminar a impunidade reinante no nosso país sobretudo no âmbito da corrupção (que estaria gerando riscos inclusive para a democracia), vem o deputado Paulo Renato Souza sugerindo a criação de um Tribunal Superior da Probidade Administrativa (O Estado de S.Paulo de 22/7/07, p. A2). É de se louvar a preocupação do deputado para resolver o problema, de qualquer modo, a instituição de um Tribunal Superior composto de 11 membros para julgar casos de improbidade administrativa não parece ser o melhor caminho. Muito mais adequado nos afigura um novo Juizado Especial (Juizados de Instrução).

A proposta do referido parlamentar centrou-se nos delitos contra o patrimônio público. O problema, entretanto, não reside neste ou naquele delito, sim, na morosidade do processamento de todos os casos de competência originária (foro especial). Para atacar as causas do problema o correto é retirar os ministros e desembargadores da presidência da fase preliminar instrutória.

Disso deve se encarregar um juiz (ou desembargador) integrante dos Juizados de Instrução. O foro especial por prerrogativa de função existe no mundo todo. Não há como eliminá-lo nesse momento (tendo em vista o entorno cultural ocidental). Mas a instrução probatória, sem sombra de dúvida, deve ser mais célere. Um novo Tribunal Superior não resolve essa questão. Ao contrário, com pouco tempo de funcionamento tende a apresentar os mesmos gravames dos atuais tribunais.

De outro lado, não nos parece que seja preciso ?uma ampla reforma do Processo Penal, recursos mais restritos e prerrogativas menos liberais?. O mais sério vício das propostas parlamentares nos últimos tempos reside no seu tendencial ranço populista (eleitoral). O deputado Paulo Renato conta com discernimento suficiente para aparar as arestas da sua proposta. Recordemos: no Estado constitucional e humanista de Direito todas as garantias constitucionais, internacionais e infraconstitucionais devem ser preservadas, ou seja, o acusado deve contar com ampla defesa e contraditório, direito de contratar defensor etc.

A única coisa a ser feita, em síntese, consiste na criação dos juizados de instrução. No mais, deve-se seguir o regramento processual vigente. Um juiz dedicado só a isso dará a celeridade esperada. Ele presidirá toda fase instrutória e conduzirá o caso até o recebimento (ou rejeição) da peça acusatória. Uma vez recebida essa peça, envia-se tudo ao tribunal competente para o julgamento final, nos termos do procedimento acusatório (oral).

De acordo com a proposta do deputado Paulo Renato o TSPA teria competência para julgar ?os crimes contra a administração pública assim como os atos de improbidade administrativa?. Esses atos de improbidade administrativa não configuram ?delito? (no sentido formal da expressão). Logo, não deveriam nunca estar sujeitos à regra do foro especial por prerrogativa de função. Nesse ponto impõe-se ampla reforma da legislação vigente (que, por causa da sua atual dubiedade, levou o STF a corretamente admitir em junho de 2007 a inaplicabilidade da lei de improbidade aos agentes políticos).

De outro lado, se o TSPA viesse a se encarregar dos crimes contra a administração pública, os outros delitos ficariam sob a jurisdição dos atuais Tribunais Superiores. Ou seja: o problema da impunidade continuaria porque esses tribunais não contam com estrutura para o processamento preliminar dos casos que estão sujeitos à sua competência originária.

Sugere-se, de outra parte, que o relator do caso receba monocraticamente a denúncia, ?sem recurso ao plenário?. O juízo de admissibilidade (ou inadmissibilidade) da denúncia é um dos mais relevantes, porque traz conseqüências sérias para o denunciado na media em que ele se transforma em ?réu? a partir do momento em que a denúncia é recebida. Recorde-se que o ato do recebimento da denúncia pode implicar abusos incomensuráveis, daí a importância capital dos recursos (que existem para cumprir a função corretiva das ilegalidades e dos constrangimentos). Cortar recursos excrescentes (como é o caso do protesto por novo júri, v.g.) é uma coisa, mas isso jamais pode ser confundido com a eliminação das garantias mínimas dos acusados.

Em suma: não nos parece acertada a proposta de criação de um TSPA. Conta com maior chance de acerto um juizado especial (Juizados de Instrução), que funcionaria sob a égide do contraditório. A vantagem desse mecanismo consiste no seguinte: toda prova produzida perante esse juiz não precisa ser renovada perante o Tribunal competente. Adotando-se o sistema acusatório, tudo é ratificado (neste tribunal) oralmente. A ampla defesa, nesse caso, somente é exercida para aclaramento de pontos divergentes.

A celeridade esperada só se pode alcançar, como se vê, com a introdução no nosso ordenamento jurídico dos Juizados de Instrução, que devem instruir todos os casos de competência originária. No âmbito processual e operacional essa parece ser a melhor solução. Que, de qualquer modo, não esgota todo o arsenal de possibilidades.

Paralelamente à idéia da criação dos Juizados de Instrução, a criminalidade organizada coligada com a corrupção deve também ser enfrentada com o uso de mecanismos penais premiais, tendentes ao consenso, à colaboração. A figura do colaborador da Justiça apresenta-se bastante apropriada nesses casos de criminalidade econômica.

Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder mundial em cursos preparatórios telepresenciais – www.lfg.com.br)

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