Progressão do regime de crime hediondo não é um progresso social

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus 82.959, proferiu decisão histórica, ao permitir a progressão de regime prisional para o pastor evangélico Oséas de Campos, 47 anos, acusado de crime hediondo, com sentença inicial de 18 anos de prisão e, com sucessivos recursos, reduzida para 8 anos e 2 meses. O pastor consta como paciente (o beneficiário) e impetrante (quem ajuíza) da medida processual penal, o que levou muitos jornais e revistas a colocarem, em suas manchetes, que o acusado obteve um benefício em nome próprio, num país de 575 mil advogados e grandes juristas (Estadão de 26-02-06). Sabemos, contudo, que tal medida judicial não alcançaria a Suprema Corte sem o auxílio de um competente profissional da área jurídica.

É básico, mas para fins didáticos, não custa relembrar que hediondos são aqueles crimes definidos pela Lei n.º 8.072/90, dentre eles o latrocínio (roubo seguido de morte), extorsão mediante seqüestro (para alguns, seria o ?seqüestro relâmpago?), homicídio qualificado ou em ações de grupos de extermínio, atentado violento ao pudor, estupro. São crimes equiparados aos hediondos: tráfico de entorpecentes, tortura e terrorismo.

A tese de inconstitucionalidade do § 1.º do art. 2.º, da Lei n.º 8.072/90 não é nova, e questiona-se a violação ao princípio da individualização da pena há mais de 15 anos, ou seja, desde a sua edição. Nesse ínterim, alguns presos têm obtido o benefício da progressão, seja por omissão da sentença que não esclarece o cumprimento ?integralmente em regime fechado?, seja pelo empate nas votações nos Tribunais, ou por decisões monocráticas até que o STF, por sua composição plenária, decidisse sobre a eventual inconstitucionalidade do mencionado dispositivo.

O que surge de novo é a tentativa de ampliar a decisão proferida pelo STF, num caso de crime contra os costumes, sem violência real, para casos mais graves ainda, com o recurso desmedido à força, à violência, contra valores extremos como a vida humana. Diga-se que houve queima de fogos de artifícios pelo Brasil afora, por toda a criminalidade organizada, em presídios e fora deles.

A prevalecer tal raciocínio, o preso que seqüestra com o fim de resgate, condenado à pena mínima, pode, depois de cumprida 1/3 da pena, ser colocado em liberdade (livramento condicional com obrigações de não mudar de residência sem autorização judicial, obter ocupação lícita e, sendo o caso, proibição de freqüentar determinados lugares – art. 132 da Lei n.º 7.210/84 c/c art. 83, I do CP), ou seja, após 2 anos e 8 meses.

O condenado à pena de 20 anos, por matar (durante um assalto) um dono de padaria ou banca de revistas ou um consumidor que estava no local errado na hora errada, ao final de 80 meses, ou seja, com 6 anos e 8 meses de cumprimento da pena estará solto (sujeito a condições simples), isso se não trabalhar, pois, do contrário, pode haver, ainda, a remição, ou seja, a contagem do tempo à razão de dedução de 1 dia de pena por 3 de trabalho (art. 126, § 1.º c/c art. 128, ambos da Lei n.º 7.210/86).

Além disso, a progressão do regime, antes não admitida em lei, agora permitida pelo STF, ocorrerá com o cumprimento de 1/6 da pena pelo preso de bom comportamento (art. 112 da Lei n.º 7.210/84). O condenado, no caso citado, poderá progredir do regime fechado para o semi-aberto após 40 meses, ou seja, 3 anos e 4 meses, trabalhar, no período diurno, fora da colônia agrícola e freqüentar cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior.

Partindo de um caso concreto, podem e devem os juízes e Cortes de Justiça ressaltar as suas peculiaridades e justificar por que a legislação vigente não é aplicável, naquelas circunstâncias. Para isso temos juízes humanos e não máquinas programadas com algoritmos. Toda generalização fere o senso comum e a lógica dos acontecimentos.

Surpreende-nos a ampliação dos contornos da decisão do STF (Informativo do STF 418) propalada por muitos. Felizmente, a sociedade civil, organizações de apoio a familiares de vítimas da violência urbana, delegados de polícia, associações de magistrados e de promotores têm buscado remediar o futuro tenebroso e o caos da segurança pública que está por se instalar. Ainda existem homens sensatos, comprometidos com a realidade e não com a utopia, que têm agido de forma proativa e tempestiva.

Urge a interpretação restritiva do acórdão do STF, em votação por apertada maioria. Declarou-se a inconstitucionalidade, no caso concreto, e que assim se permaneça, pelas peculiaridades do fato em comento. É uma realidade irrefreável a utilização do habeas corpus como panacéia de todos os males, fugindo do seu leito natural, para uso transverso como meio de correção de distorções no processamento de ações penais, por desconfiança da polícia ou pela ?santidade? presumida dos homens do ?colarinho branco?.

A sociedade, contudo, merece ser preservada, pois ainda não há súmula vinculante sobre o tema, e, ainda em curso, o Projeto de Lei do Senado Federal n.º 13/2006, elaborado pela Comissão Mista Especial da Reforma do Judiciário, que regulamenta a edição, revisão e cancelamento das súmulas com efeito vinculante pelo STF.

Por outro lado, é aconselhável que se melhore e aperfeiçoe o ordenamento jurídico vigente, com alterações na política de segurança pública e política penitenciária, com ressocialização do preso. O ?fechar os olhos?, como tem sido a edição anual de decretos de indulto de Natal, e nivelar o tratamento penal para autores de uma infração média, grave e gravíssima, terá uma grave repercussão social e não resolverá a celeuma da superpopulação carcerária ou a questão de oportunidade de emprego digno e moradia para o egresso e seus familiares.

A fim de amenizar o problema, o Ministério da Justiça anunciou, no dia 20-03-2006, que enviou um projeto de lei ao Congresso Nacional que prevê que, no caso de réus primários que cometeram crime hediondo, será necessário cumprir 1/3 da pena antes de o preso pedir a progressão para o regime semi-aberto (ao contrário do 1/6-STF) e, com 2/3 da pena cumprida, pedir o livramento condicional (ao contrário do 1/3-STF).

Que se concorde com o STF, no caso concreto examinado no HC 82.959, ou melhor, com a maioria de seus integrantes. Não se pode, contudo, generalizar e estender essa decisão para todos os infratores perigosos e integrantes de grupos criminosos organizados. Há outros casos, em que nos parece ser injusto o confinamento, em regime integral fechado, como as ?mulas? que transportam droga para os narcotraficantes. A prática nos mostra que muitos o fazem por necessidade ou pela sedução do dinheiro fácil e não pela reconhecida periculosidade, que é legal, mas não real.

Fora dessas hipóteses, o cidadão de bem corre o risco de ver decretado seu regime integralmente fechado na sua residência, em horário diurno e, notadamente, noturno, quando muitos já evitam comprar um remédio, abastecer o veículo, aguardar amigos ou familiares dentro do carro. Hoje em dia, não é mais seguro sequer aguardar a abertura de um portão eletrônico de garagem. A progressão tupiniquim do regime se faz às avessas: o contribuinte se recolhe e o meliante se livra solto, arvorado nos direitos humanos (deles e não nos das vítimas e dos policiais) e na transigência humana.

Rodrigo Carneiro Gomes é delegado de Polícia Federal, em Brasília, professor da Academia Nacional de Polícia. Pós-graduado em Processo Civil e pós-graduando em Segurança Pública e Defesa Social. Ex-assessor de Ministro do STJ. Atua na Diretoria de Combate ao Crime Organizado.

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