Não se pode deixar de dizer que a pergunta, embora pareça descabida, não é. Se de alguma forma ainda estamos no início da caminhada rumo a um possível processo social de inclusão da pessoa portadora de uma ou outra necessidade especial, por outro se faz necessário iniciar, desde já, as devidas correções nos equívocos operacionalizados em relação a ela.

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Recentemente chegou até mim uma lista dos municípios do interior do Paraná onde esta condição já é realidade. Confesso que no primeiro momento eu fiquei sem uma resposta. Afinal, o que dizer em uma situação como esta? Mas, depois de algumas reflexões, principalmente uma que tive com Rossana Ramos (que figura entre as maiores autoras e educadoras inclusivas do Brasil neste momento), seguem meus primeiros apontamentos.

Se por um lado a educação especial teve, tem e terá novas etapas a serem elaboradas, por outro é incondicional o fato de que as distorções, em seu bojo, talvez tenham sido, em boa parte, grandes responsáveis por uma gama destes problemas. A busca pela superação do atendimento baseado na piedade e no assistencialismo barato já se espalhou por todas as camadas sociais. Há exceções, mas elas são poucas.

O deficiente não é um impotente, tampouco um incapaz. Ele é pessoa em toda sua plenitude, e como tal, dotada de muitas potencialidades e com as mesmas condições dos ditos ?alunos regulares/normais?. O que eles requerem e precisam são espaços onde suas potencialidades possam ser elaboradas. Eles precisam de chance para começar e o resto é só deixar que, aos poucos, eles podem conquistar. No entanto, é imprescindível que não nos esqueçamos do tempo, que para eles pode não ter a rapidez que nós almejamos, mas sim a consciência que eles possuem. E aí as coisas se modificam.

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Precisamos deixar claro que esses alunos, como em qualquer outro processo pedagógico, necessitam de professores com qualificações profissionais e emocionais capazes de possibilitar uma satisfatória condução das suas práticas pedagógicas. E até onde podemos enxergar, tais necessidades não concernem apenas aos professores dos deficientes, mas a todos os professores. Afinal, especiais somos todos nós, no sentido literal do vocábulo.

A constituição de 1824 já consagrara o direito de educação a todos. As constituições de 1934, 1937 e 1946 idem. Em 1948 a Declaração Universal dos Direitos do Homem chega e ratifica estes ideais. Em 1959 surge a Declaração dos Direitos da Criança e, em 1994, surge a Declaração de Salamanca, com o aval da ONU que, a partir de então, se tornou o mais importante documento sobre os direitos da pessoa portadora de deficiência. Dela partem os objetivos gerais, que em síntese podem ser: o reconhecimento das diferenças; o atendimento às necessidades de cada um; a promoção de aprendizagem e o reconhecimento da importância da ?escola para todos e a formação de professores para atuação nestas células?.

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Em nenhum momento a Declaração de Salamanca fala sobre a valorização do professor de educação especial em detrimento dos não. Pelo contrário, o documento é muito seguro no sentido da inclusão total. Ele não diz, mas transcendem dali os valores da inclusão e neles estão as igualdades de condições, inclusive de trabalho e de valorização profissional, seja para portadores ou não de deficiências.

No entanto, ao nos deparar com esta realidade, um grupo de professores nas redes municipais ganhando mais porque atende alunos especiais, fica-nos a pergunta: como um município consegue justificar ao grupo de professores que uns terão salários até 55% maiores que outros só porque possuem alunos cegos ou surdos ou mudos em suas salas de aulas? Além disso: que ideais estão por trás de práticas como esta? Que embasamento político e teórico é usado para votar favoravelmente a uma decisão dessa natureza? Em um momento em que o mundo todo discute formas mais críticas de atingir a democracia, a igualdade e a seguridade dos direitos, me parece um tanto disforme tal prática. Além do mais, como ficará um aluno dos referidos professores diante da constatação do fato? Antevejo a pergunta: – Professor, é verdade que você só aceitou a nossa relação porque irá ganhar 55% a mais de salário?

Se a resposta não parecesse constrangedora, poderíamos acatar a prática como legítima, e, portanto, pertinente em um mundo como o nosso. No entanto, como esta prática me parece um pouco desconfortável, sugiro que repensemos este posicionamento. A atitude não se sustenta, e merece ainda muitos questionamentos.

Preciso ainda dizer que corre a boca pequena, por aí, a existência de verdadeiros lobbies nas cidades em questão, com o intuito de chegar a uma dessas salas, pois para os profissionais ávidos por salários e insossos em suas ações, somente o incremento salarial lhes garantiria a permanência.

Caso o panorama permaneça inalterado, ou a prática da diferenciação salarial continue, decorrerá que as matrículas dos alunos portadores de necessidades especiais em salas regulares, a única condição verdadeira de inclusão, jamais acontecerão, pois eles, de crianças cujo direito à educação não é plenamente garantido, passarão a objetos cobiçados por alguns ?mestres?. Assim, todos nós perderemos: as crianças, porque não reconhecerão a pluralidade; os pais, porque dificilmente enxergarão os filhos como reais cidadãos; a comunidade, porque dificilmente criará espaços mais críticos e democráticos e, finalmente, os professores, porque passarão pela escola sem perceber que a diferença é uma grande bobagem, e o que importa mesmo é a multiplicidade de pensamentos, de tipos e de ações.

Nota: Sugestão de leitura: Na minha escola todo mundo é igual. Rossana ramos. Editora Cortez, 2005.