Alexandre Knopfholz
Guilheme Alonso
Luis Otavio Sales
1. Introdução
Aldous Huxley (1894-1963), em seu antológico “Admirável Mundo Novo”, concebido em 1932, antecipava a evolução tecnológica e científica do mundo pós-moderno. George Orwell (1903-1950), em “1984”, idealizou, ainda na década de 40, a tecnologia contra as liberdades individuais através de seu “Big Brother”.
Philip Kindred Dick (1928-1982) vislumbrou, em um de seus textos, uma sociedade digital no ano de 2054, na qual os agentes policiais sabiam, através de um complexo aparato de máquinas, quem cometeria um crime no futuro, tornando possível prender um cidadão antes que este praticasse qualquer ato ilícito.
O confronto moral entre a prisão de um ainda inocente e a repressão antecipada do Estado é magistralmente posta na imaginação do autor, do leitor e do espectador, uma vez que esta foi a inspiração para o filme “Minority Report”, dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Cruise, em 2002.
Tais obras têm entre si, além da inegável vanguarda de idéias, um flagrante pessimismo em relação ao progresso científico da civilização, destacando aspectos desumanizadores que podem surgir com o advento das tecnologias.
Contudo, não precisa ser assim. É preciso e possível utilizar o inafastável avanço científico em prol da sociedade, traduzindo-se em elemento facilitador das relações sociais, e não o imaginando como instrumento de repressão, de controle ou que importe qualquer dificuldade ao homem.
Neste sentido, a tecnologia vem para facilitar a vida do indivíduo pós-moderno; jamais para prejudicá-lo. Seu objetivo não é, pois, de ser um obstáculo para o cidadão; e sim, um meio de aproximação e auxílio em uma sociedade cada vez mais complexa e heterogênea.
Neste contexto, é inevitável a influência da tecnologia no Direito. Juliana Fioreze, advogada e Mestre em Direito Processual e Cidadania, adverte, com propriedade, que “é certo que o Direito não pode permanecer estático frente ao desenvolvimento tecnológico, e sua modernização é imprescindível para que se alcance segurança jurídica nas relações mantidas na sociedade informatizada”(1).
No mesmo sentido, a advogada paulista, especialista em Direito Digital, Patrícia Peck Pinheiro, bem observa que “O cotidiano do mundo jurídico resumia-se a papeis, burocracia e prazos.
Com as mudanças ocorridas desde então, ingressamos na era do tempo real, do deslocamento virtual dos negócios, da quebra de paradigmas (…). O Direito também é influenciado por essa nova realidade. A dinâmica da era da informação exige uma mudança mais profunda na própria forma como o Direito é exercido e pensado em sua prática cotidiana”(2).
2. A evolução legislativa
Neste panorama, adveio a Lei n.º 11.419, de 19 de dezembro de 2006, que dispôs sobre a informatização do processo judicial, admitindo o “uso de meio eletrônico na tramitação de processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais (art. 1.º).
Em seu bojo, há disposições acerca da comunicação eletrônica dos atos processuais (arts. 4.º a 7.º), com a criação dos Diários de Justiça eletrônicos, que substituem quaisquer outros meios e publicações oficiais, salvo quando exigida por lei a intimação ou vista pessoal; e do processo eletrônico (arts. 8.º a 13), no qual é possível a tramitação do feito sem papéis ou autos físicos.
Neste caso, as petições são encaminhadas em forma digital, com recibo eletrônico do protocolo. A identificação do subscritor da peça processual é feita através de assinatura eletrônica, assim considerada a identificação digital baseada em certificado emitido por autoridade certificadora credenciada (v.g. oab) ou mediante cadastro prévio do usuário no Poder Judiciário, conforme disciplinado pelos órgãos respectivos.
O processo digital vem sendo, paulatinamente, aplicado e a tendência natural é que se torne a regra nos próximos anos. Neste sentido, em nosso Estado, é possível citar a Resolução n.º 3/2009 do Tribunal de Justiça, relativa aos feitos de competência estadual (Projudi), e a Resolução n.º 17/2010 do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, aplicável às ações judiciais federais (e-proc).
É de se destacar, ainda, a Resolução n.º 2/2007 no âmbito do Superior Tribunal de Justiça bem como a Portaria 52 do Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual a partir de 1.º de agosto do corrente ano somente é possível o envio de documentos àquele órgão por meio eletrônico.
3. As dificuldades práticas
Sem questionar a importância e validade do processo eletrônico, é certo que a fase embrionária de sua utilização vem causando algumas dificuldades aos operadores do Direito, inclusive demonstrando lacunas legislativas que necessitam ser preenchidas.
3.1. A dificuldade da leitura harmônica da ação judicial
O primeiro (e mais aparente) obstáculo para Magistrados, membros do Ministério Público e advogados é a dificuldade em proceder à leitura, em meio digital, de petições, despachos de mero expediente, decisões, além dos documentos juntados pelas partes.
Com efeito, a análise do caso através da tela de um computador não permite, por exemplo, uma análise comparativa entre peças, depoimentos e decisões do processo.
É sabido que, muitas vezes, é necessário proceder a um exame comparado para bem conhecer o caso e estudá-lo em detalhes. Assim, não raro o advogado criminalista precisa ter a denúncia e as alegações finais em mãos para cotejar os argumentos ali expendidos com uma sentença prolatada.
Da mesma forma, é preciso ter em mãos o depoimento de uma testemunha para elaborar alguma peça de defesa. Ou, ainda, é necessário que a parte tenha, em fácil acesso, a petição inicial e a contestação para proceder à sua impugnação.
Como se não bastasse, a maneira como vêm sendo disponibilizados os atos do processo dificulta ainda mais a sua compreensão. O que se tem hoje é um emaranhado de blocos virtuais de documentos, muitas vezes sem a nomenclatura do ato e com uma mesma peça fragmentada.
Por exemplo: em caso de denúncias longas, há mais de um arquivo relativo à mesma peça, o que leva o operador do Direito, muitas vezes, a imprimir a peça de acusação para entendê-la de maneira completa.
E, assim fazendo, perde sentido a digitalização do processo. Se é necessário e adequado o processo eletrônico, este deve ser convertido em verdadeiros “autos digitais”, dispostos de forma lógica e sistemática.
Explica-se: o processo poderia ser dissecado, de acordo com a fase e o respectivo ato, sendo o acesso realizado por meio de menus dinâmicos e interativos: identificação imediata do conteúdo de cada arquivo digital, antes do download.
É necessário, pois, aprimorar o sistema vigente para tornar a leitura eletrônica dos autos (que, por si só, é mais difícil para a parte) ao menos organizada e clara, sob pena de dificultar o acesso do jurisdicionado à Justiça, o que é impensável em um Estado Democrático de Direito.
3.2. A assunção, pelas partes, de funções que competem aos cartórios ou secretarias
Outro ponto relevante corresponde à conclusão de que o processo eletrônico pode onerar demasiadamente as partes, ao delegar funções que competem à serventia do Poder Judiciário.
Isto porque, se antes bastava a simples juntada de petição e respectivos documentos em determinado cartório ou secretaria, agora a parte tem outros encargos além do simples protocolo (ainda que por meio digital).
Além da presunção de que o advogado tem fácil e rápido acesso à internet, presume-se que ele tenha ainda outros equipamentos de informática, como um scanner para a reprodução eletrônica de documentos.
Ou seja: se antes o jurisdicionado limitava-se ao protocolo da petição com os respectivos documentos, agora precisa acessar a internet, cadastrar-se no sistema de cada tribunal, protocolar, por via digital, a petição e ainda digitalizar os documentos que a instruem.
É certo que a Lei n.º 11.419/06 determina aos órgãos do Poder Judiciário a disponibilização de equipamentos de digitalização e de acesso à rede mundial de computadores aos interessados (art. 10, º3.º). Tal disposição, embora louvável, não exclui a obrigação da parte em solucionar os problemas da administração da Justiça.
O advogado deve administrar o prazo legal (que, em regra, não é generoso) não apenas com a elaboração da defesa técnica, mas também com questões burocráticas, como, por exemplo, digitalização e disponibilização de documentos na internet.
Fala-se, então, em assunção de atribuições próprias da secretaria, ao argumento de que o Advogado utilizará o exíguo prazo legal, em prejuízo da ampla defesa de seu cliente, para dar cumprimento parcial a funções que competem a serventuários da Justiça.
E não parece ser solução para esse problema a previsão do º5.º, do art. 11, Lei n.º 11.419/2006, segundo o qual se dispensa a digitalização em caso de grande volume de documentos ou por motivo de ilegibilidade.
Entendemos que ao Advogado caberia apresentar à secretaria ou ao cartório os documentos que pretende juntar aos autos, independentemente de quantidade e espécie.
O processo de digitalização, então, competiria aos serventuários.
Questiona-se, assim, se um sistema que busca a desburocratização e a celeridade na prestação jurisdicional não se configura em meio que dificulta o acesso ao Poder Judiciário.
3.3. A identificação eletrônica através de senha
Um aspecto muito preocupante do novo sistema diz respeito à necessária mudança da dinâmica de acompanhamento processual. Com os autos físicos em cartório, quaisquer diligências simples, como extração de cópias e verificação de andamento, são normalmente realizadas por estagiários que, sem a delegação de poderes, têm acesso aos autos sem riscos ao bom andamento do processo.
Nos autos digitais, essa situação muda de figura. É que a lei, visando garantir a segurança, determina que o acesso ao processo eletrônico ocorrerá após o cadastro individual de cada advogado envolvido no caso. Ou seja, apenas os participantes do processo terão o acesso formal aos autos virtuais.
Disso se extrai que o acesso casual dos estagiários a processos públicos é abolido. Restam ao advogado duas alternativas: ou fornecer a senha ao acadêmico, causando insegurança quanto ao equivocado uso dos poderes do defensor, ou dispensar o estagiário, cabendo ao procurador constituído o trabalhoso acompanhamento diário de inúmeros processos virtuais. Em outras palavras: mais um ônus.
3.4. Os empecilhos técnicos do processo eletrônico
Além da dificuldade de manuseio dos autos virtuais, há outros obstáculos ao bom funcionamento do processo virtual, especialmente no que tange ao tamanho dos arquivos comportados, normalmente limitados entre 1 e 1,5 Mb (Megabyte).
Embora a Lei n.º 11.419/2006 preveja a possibilidade de protocolo físico de grandes volumes de documentos, os limites impostos impossibilitam o protocolo de petições que sejam compostas de textos e imagens, por exemplo.
Nesses casos, há uma visível limitação aos defensores, que devem optar entre o empobrecimento visual da petição e o temerário desmembramento do arquivo digital.
Ademais, a limitação de tráfego de dados imposta pelos Tribunais denota uma fragilidade técnica dos sistemas de processo eletrônico, incompatíveis com os formatos de arquivos disponíveis aos usuários.
Por exemplo: uma petição de cinquenta páginas, em formato “PDF”, supera o tamanho máximo autorizado. Trata-se, pois, de mais uma limitação à atuação das partes.
3.5. Substabelecimento para quem tem procuração
Em recente experiência com o sistema eletrônico implementado pela Justiça Federal da Seção Judiciária do Paraná, constatou-se um inusitado entrave ao exercício profissional da advocacia: em feitos com mais de um procurador para uma mesma parte (com instrumento procuratório devidamente formalizado e juntado aos autos), apenas um pode acessar o processo digital.
Ou seja: não basta a procuração para que todos os procuradores exerçam as prerrogativas outorgadas e acessem os autos digitais. É que no sistema e-proc, o Advogado selecionado pela Secretaria como detentor do cadastro vinculado ao processo deve acessar o sistema e substabelecer aos demais colegas para que, então, todos os procuradores disponham de iguais poderes (sem embargo, repita-se, da formalização do mandato).
O que pode parecer um problema de fácil resolução na teoria retrata, na realidade, uma dificuldade comprometedora do trabalho pontual dos Advogados.
4. Conclusão
O movimento de implementação do processo eletrônico, liderado pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça é, sem dúvidas, uma válida tentativa de superação do atraso tecnológico que acomete o Poder Judiciário brasileiro há, pelo menos, duas décadas.
Se é certo ser necessária e ecologicamente correta a digitalização dos processos, é ainda mais certo que essa mudança deve ser extremamente cautelosa. Em primeiro lugar, é inadmissível que o processo eletrônico substitua, imediatamente, o processo físico.
Tecnologia não se impõe pela vontade de uma ou outra pessoa e isso é comprovado pela história da evolução tecnológica do planeta. Por exemplo, o computador e o telefone celular somente se tornaram instrumentos indispensáveis ao cotidiano das pessoas após anos de sua criação.
O uso se popularizou pela difusão das facilidades que esses instrumentos trariam ao público. No caso do processo digital, a implementação deve ocorrer de forma paulatina, com a introdução de avanços que, com o tempo, convençam os usuários do Poder Judiciário de que o processo físico não mais é necessário.
Vale destacar a recente experiência do Tribunal Regional do Trabalho da 9.ª Região que, ao invés de implementar o processo eletrônico em suas varas tradicionais, criou novas varas virtuais.
Ou seja, além de não causar um grande impacto aos usuários, o TRT-9 conseguiu conciliar a introdução experimental de uma nova tecnologia com a ampliação de seu serviço, já que não pôs em risco a atividade forense anteriormente desenvolvida.
Não é aconselhável o desgarramento dos dados da experiência ou o menosprezo a protótipos. É necessária, antes de tudo, a certeza da compatibilidade do processo eletrônico com as necessidades daqueles que dele usufruirão, além da experiência do bom funcionamento do sistema virtual com a realidade dos meios de informação do país.
Ou seja, além de substituir o sistema atual, o processo eletrônico deve fazê-lo com melhor qualidade, eficiência e razoável demora, atendendo às necessidades de seus usuários e da sociedade. Caso contrário, teremos de admitir que Aldous Huxley, George Orwell e Philip Kindred Dick não fizeram obras de ficção.
Notas:
(1) FIOREZE, Juliana. Videoconferência no Processo Penal Brasileiro – Interrogatório On-line. 2.ª ed. Curitiba: Juruá, 2009. p. 98.
(2) PECK, Patrícia. Direito Digital. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 01
Alexandre Knopfholz, Guilheme Alonso e Luis Otávio Sales são advogados. www.dotti.adv.br