Em um Estado Democrático de Direito, entre a condenação de um cidadão e a imputação que lhe fazem de um crime, há o processo. Ele serve, basicamente, para conferir ao imputado condições de se defender amplamente daquilo por que é acusado, dando-lhe espaço e armas paritárias para contradizer a acusação. Esta, por sua vez, ainda no processo, convencida da culpa do réu, empenha-se em formar o convencimento do juiz através de meios lícitos e com base em provas suficientes. Tudo deve ser assim, porém…

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O processo penal como garantia do cidadão frente ao aparato estatal é uma conquista da humanidade. Este processo garantista, marca da Constituição da República de 1988, prima pelos princípios da publicidade e do juiz natural, entre outros. Nem sempre foi assim. (E ainda hoje muitas vezes não é). Na França, estas conquistas remetem ao século XVIII; foram as Leis de 11 de agosto de 1789 e de 8 de outubro de 1789 que, respectivamente, suprimiram as justiças senhoriais e instituíram a publicidade obrigatória das audiências.

O simples dever de se informar ao cidadão a razão pela qual lhe abordam nem sempre foi dever dos agentes estatais. ?Não consigo lembrar-me de qualquer delito, por menor que seja, do qual possa ser censurado. Mas até isso é de pouca importância; a verdadeira pergunta é: quem me acusa? Qual a autoridade que instaurou este processo? Os senhores são representantes da lei?? Trata-se de trecho de ?O Processo?, obra clássica do tcheco Franz Kafka, publicada postumamente, em 1925. Narra o autor os passos de um bancário de Praga que se vê abruptamente submetido a um processo judicial sem aparentes motivos e, mais, que percorre todo O Processo sem descobrir.

Não obstante, o protagonista percebe que uma mesma lei formalmente aplicável sem distinções a todos os cidadãos é concretizada com mais ou menos rigor de acordo com a posição social e a influencia política do acusado, sendo possível que funcione apenas para alguns contra abusos do aparato estatal. ?Por certo não li em nenhuma lei, apesar de que naturalmente tem que estar estabelecido ali que o inocente tenha de ser absolvido e, imediatamente não se estabelece nela que se possa influir sobre juízes por meio de relações pessoais. Agora bem; precisamente me inteirei de que ocorre todo o contrário, porque o certo é que não tenho conhecimento de nenhuma absolvição real, mas sim de muitos casos de influências pessoais?, diz o personagem Titorelli, pintor retratista de magistrados, em certa altura da narrativa kafkaniana.

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Em mente a realidade brasileira contemporânea, constata-se a positivação de uma série de conquistas favoráveis ao cidadão. As normas processuais penais que se extraem da Constituição da República, por mais democráticas e garantistas que sejam, mostram-se, entretanto, insuficientes. Por entre as engrenagens do processo, entre uns e outros atos que se contrapõem e encadeiam com vistas a um fim, há espaços sujeitos à manipulação e ao arbítrio. Estes espaços circulam através da abertura da linguagem, cujos significados são sempre construídos e mutáveis. Com efeito, a medida da efetividade material dos dispositivos constitucionais vai dosada pela postura dos homens que as tomam como instrumentos. Cabe ao hermeneuta, cuja humanidade lhe impede de ser absolutamente neutro e objetivo, construir a norma.

Processo penal garantista e democrático é indispensável. Mas não basta. Há que se atentar aos limites éticos que lhe são subjacentes. Evidente a impossibilidade de se tratar do Direito como fenômeno hermético e puro, pois impende compreendê-lo como construção histórica de sociedades determinadas no tempo e no espaço. O homem que o vivencia e transforma coloca sua cara no processo, empresta-lhe sua identidade, seus valores, suas esperanças e neste sentido, dele faz parte.

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Dentre as inúmeras abordagens possíveis do tema, o psicanalista Alfredo Néstor Jerusalinsky aponta ?O Direito, O Ato, O sujeito: Uma Articulação Ética Difícil?, conferência a ser ministrada no dia 9 de junho de 2006, em Curitiba, a convite do Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da UFPR.

Jerusalinsky é um dos destaques do evento ?Interseção entre Direito e Psicanálise: uma Leitura a partir de ?O Processo? de Kafka?, que acontece no Salão Nobre da Faculdade de Direito durante os dias 8, 9 e 10 de junho deste ano. Sob a coordenação do professor doutor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, o Núcleo de Direito e Psicanálise reúne estudiosos interessados em discutir possibilidades alternativas de compreensão e enfrentamento do Direito. Recorre principalmente, para tanto, às perspectivas da Psicanálise e Filosofia. O comprometimento engajado e crítico do grupo fica evidente pelo que se vê da programação (confira a íntegra abaixo).

Instruções sobre as inscrições estão disponíveis no site www.direito.ufpr.br/ ppgd/link/eventos/2006.htm.

Os sessenta primeiros inscritos ganham o livro ?Direito e Psicanálise: Interseções a partir de ?O Estrangeiro?, de Albert Camus?, resultado das conferências proferidas durante as Jornadas de 2005. Maiores informações pelo telefone (41) 3310-2685.

Helen Hartmann é secretária-geral do Núcleo de Direito e Psicanálise. Programa de Pós-graduação em Direito. Universidade Federal do Paraná