Problemas penais atuais: a lei dos crimes hediondos

A legislação de terror criada em face do verdadeiro pânico que agita a sociedade em comum, diante do estado atual da violência e a criminalidade, tem levado o legislador penal a adotar posições graves e extremamente conflitantes com os objetivos que pretendia ver atingidos.

Um desses graves problemas vem sendo analisado pela doutrina e pela jurisprudência de nossos tribunais, havendo posições favoráveis e contrárias a um abrandamento da lei que criou essa punição exasperada frente aos chamados crimes hediondos.

A Lei 8.072/90 e a que se lhe seguiu a Lei 9.714/98 ampliou ainda o elenco desses crimes e com isso se criou um pacto de vingança da sociedade contra todos os princípios humanitários que estruturam e dão vida ao chamado Direito Penitenciário fortemente apoiado na Constituição Federal e na Lei de Execuções Penais.

Essas leis de absoluto rigor draconiano, são adeptas das correntes mais radicais e conservadoras em matéria de punição em Direito Penal, associadas que estão ao chamado Direito Penal do Inimigo, ao movimento Tolerância Zero?, como o da ?Law and Order – Lei e Ordem? , com a chamada teoria das ?Broken Windows- Janelas Quebradas? e outras que lembram as tendências mais fortes do nazismo.

Em resistência a essas posições que são apenas rigorosas demais e que não tem contribuído em nada para a pacificação social, que tudo querem ver resolvidas como se isso fosse um grave problema de Direito Penal, criou-se no Brasil, precisamente nas tradicionais arcadas do Largo de São Francisco em São Paulo, onde se encontra a Faculdade de Direito da USP. o Movimento Antiterror, formado por juristas de escol que tem lutado contra esse estado de coisas.

Essa lei a respeito dos chamados crimes hediondos, no seu barbarismo proíbe a concessão da anistia, graça e indulto, fiança, liberdade provisória e progressão de regime penitenciário, aumentou o elenco dos crimes que eram assim adjetivados e elevou a pena mínima de vários tipos penais e o tempo para a obtenção de benefícios processuais há muito recomendados pela moderna Ciência Penitenciária.

Após todos esses anos, pois a Lei 8.072/90 data de 1990, portanto transcorridos mais de 15(quinze) anos de sua aplicação, o que lhe resta não pode ser considerado um resultado bom, pior, não conseguiu melhorar em nada o cumprimento das penas, nem abrandar a criminalidade e a violência imperantes entre nós, como alias se faz no mundo todo.

Basta recordar que após o seu advento, a população carcerária que foi duramente atingida por essas medidas draconianas, e que retirou desses apenados a possibilidade da progressão penal, quando definitivamente condenados e os chamados substitutivos penais para a pena de prisão em todas as suas manifestações; o quadro é por demais dramático e urge que um direito humanitário e conseqüente com a realidade prisional do pais tome lugar nos debates que se travam sobre o assunto.

A matéria começa a apresentar seus lamentáveis equívocos a partir do próprio texto constitucional, pois o constituinte fez inserir, exatamente no capítulo dos direitos e garantias individuais um texto de profunda infelicidade, conforme se lê do art. 5.º inciso XLIII:

?a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los se omitirem:?

Ora a pretexto de punir infrações gravíssimas como o terrorismo e a tortura. esse posicionamento do legislador constituinte, adotando posturas que favorecem o radicalismo foi logo absorvido pelas forças mais reacionárias deste pais, inclusive determinados canais de comunicação social que mesmo conhecendo a dura e pérfida realidade de nosso sistema prisional nacional, com cadeias infectas e indignas do ser humano, mesmo assim, batalhou para conseguir que uma dezena de crimes já severamente punidos fossem incluídos na classificação de hediondos, tornando ainda mais rigorosos e odiosos os termos dessa punição.

Mas esse posicionamento que contraria preceitos penais humanísticos, cristãos, civilizados, atacando ainda os princípios constitucionais da personalidade da pena, da presunção de inocência, da reserva legal, e da progressão penal, trouxe ainda um corolário de situações dramáticas e humilhantes que alguns dos nossos legisladores, doutrinadores e julgadores não querem e teimam e não querer reconhecer.

Refiro-me que em oposição a essas tendências, fortes reações foram criadas como resposta e essa lei dos crimes hediondos, dentro do movimento penitenciário que a partir daí conheceu práticas de violência que até então eram ignoradas.

Surgiram de dentro das penitenciárias, inicialmente as temidas rebeliões, o violento movimento dos ?Serpentes negras?, dos tristes: ?Comando Vermelho, Primeiro Comando da Capital, Comandos do Interior? e outras siglas horrorosas que puseram em perigo um numero incontável de vítimas, com perdas de vidas, de reclusos, agentes penitenciários e até autoridades judiciárias, tudo em função da perda da esperança que a progressão penal, inegavelmente realiza.

Em termos jurídicos, o choque constitucional é inquestionável, e a prova disso esta no julgamento do ?Habeas Corpus? n.º 82.959 no plenário do Supremo Tribunal Federal, a respeito da concessão ou não da progressão de regime penitenciário, um dos mais caros e humanitários princípios de Direito Penitenciário vigorante em nosso sistema, onde as correntes conservadoras e progressistas da Suprema Corte estão se digladiando a respeito desse tema.

Ora, tal problema hoje é objeto de uma verdadeira questão de sorte a ser decidida na roleta da distribuição dos processos naquela Suprema Corte, isto porque, se o pedido cair na mão de conservadores certamente será denegado e se ao contrário cair com os progressistas esses casos serão ser atendidos, o que é sumamente reprovável em Direito onde questões iguais deverão ter solução idênticas.

No julgamento do HC 47.688-PR, Relator o Min. Paulo Galloti, anotou com absoluta precisão que não lhe agradava ver o paciente do ?habeas corpus? disputar um verdadeiro sorteio pois se o recurso heróico for distribuído para a corrente progressista por certo terá assegurada a progressão; se entretanto distribuído a ala conservadora a progressão será negada, daí porque, concedia a ordem, se alistando entre os humanistas daquela Suprema Corte.

Veja-se que o problema toma caminhos tortuosos, assim a possibilidade de se conceder a progressão de regime a presos condenados por crimes tidos por hediondos no julgamento do HC 85.959 teve os votos favoráveis dos progressistas senhores Ministros Marco Aurélio e Carlos Ayres Britto, entenderam que há direito para a progressão; já os conservadores Carlos Velloso e o recém empossado Joaquim Barbosa, negam esse direito, devendo ainda ser declarada a posição firme do Ministro Gilmar Mendes que declara em seu voto a inconstitucionalidade do artigo 2.º da Lei dos Crimes Hediondos, estando os autos com vista para a Ministra Ellen Gracie, cujo conservadorismo tem surpreendido até os seus sinceros simpatizantes, pelas suas posições jurídicas até agora adotadas.

Enquanto a Suprema Corte não decide sobre o mérito de tão tormentosa questão que a tantos interessa, alguns Ministros adotam soluções intermediárias como Eros Grau, Sepúlveda Pertence, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Carlos Britto e Marco Aurélio que concederam liberdade provisória e a progressão de regime penitenciário a vários réus acusados da prática de crimes hediondos, como alternativas viáveis até que o grande julgamento se realize.

E assim aguardamos que o Supremo decida o mérito do HC 82.959, no sentido de se reconhecer a total inconstitucionalidade da Lei que a criou, cuja solução interessa a uma multidão de pessoas, desde condenados até as mais altas autoridades do Poder Judiciário, o que sem dúvida é uma lástima, enquanto perdurar essa Lei dos crimes hediondos impondo suas terríveis conseqüências que deveriam ser banidas, para sempre, do sistema criminal do pais.

Nilton Bussi é advogado, professor da UFPR.

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