Um dos grandes temas apresentados ao [pseudo]debate presidencial de 2010 é a questão que envolve a privatização de entidades estatais. De um lado, assevera-se que as privatizações ocorridas durante o governo Fernando Henrique Cardoso foram maléficas aos interesses da nação. Do outro, pondera-se que o Estado não mais detinha capacidade financeira para gerir tais empresas, sendo o caso de menor participação desse mesmo Estado na economia. Com efeito, a partir de 1970 estabeleceu-se a doutrina denominada de “neoliberalismo” que prega a liberdade absoluta do mercado, com restrições ao intervencionismo estatal sobre a economia. Busca-se o Estado mínimo. A doutrina foi proposta por economistas franceses, alemães e norte-americanos, e na verdade é travestida do liberalismo advindo com a revolução de 1789. Tal intervenção estatal ocorreu [no caso do Brasil] em setores bem delineados. O chamado “Consenso de Washington”, criado em 1989 pelo economista John Williamson, apresentou algumas recomendações aos países que estivessem dispostos a reformar de forma substancial suas economias, países esses denominados de emergentes, dentre eles o Brasil. A cartilha, chancelada por entidades como o Fundo Monetário Nacional, Banco Mundial, dentre outras, tinha como escopo a redução do tamanho do Estado; menor intervenção na economia; ajuste fiscal, privatizações, reforma tributária etc., sendo que tais recomendações têm sintonia direta com a globalização econômica financeira, precipuamente. Importante notar que Margareth Thatcher, a partir de 1979, fez com que a Inglaterra ingressasse na onda das privatizações, a fim de que houvesse desenvolvimento. No caso brasileiro, ainda nos longínquos temos do regime militar, o presidente João Figueiredo [em 1981[estabeleceu comissão especial de privatização, buscando a redução da participação estatal na economia. No Governo José Sarney(1), a idéia de privatização [ou desestatização], tomou mais forma, tanto que, mediante edição do Decreto 91.991, de novembro de 1985, instituiu-se o programa de privatização, aprimorado pelo Dec. 95.886, de março de 1988, e este criou o chamado Programa Federal de Desestatização. Visava, pois, transferir para a iniciativa privada as atividades econômicas exploradas pelo setor público, e assim sendo, essa transferência contribuiria [em tese] para a diminuição do déficit público. No governo Sarney houve duas privatizações; no Governo Collor, mediante a edição da medida provisória n.º 26, de 1989, restou autorizada a alienação da totalidade, ou parte, das ações representativas do controle do capital social de empresas estatais. Tal media provisória foi convertida em lei [n.º 8.031/90], que instituiu o programa nacional de desestatização [que também incluía a concessão de serviço público a entes privados]. Nessa linha de proceder, houve as emendas constitucionais de n.º 5 até a de n.º 9, que alteraram substancialmente as disposições a partir do artigo 170 da Carta Federal. Em tal governo foram privatizadas 18 [dezoito] empresas, tais como a Companhia Siderúrgica Nacional – cujo procedimento final ocorreu durante Governo Itamar Franco [que era contrário ao programa de privatização, mas que colocou em mãos da iniciativa privada a Embraer, no ano de 1994] – e já ao tempo do Governo Fernando Henrique Cardoso [entre 1995 e 2002], foram vendidas a Light, a Companhia Vale do Rio Doce [uma das maiores produtoras de ferro do mundo, e alienada por US$3,3 bilhões, em 1997], a Telebrás e o Banespa. Houve entrega ao setor privado de empresas do setor telefônico, de mineração e de transportes, só que os vencedores dos leilões tinham à sua disposição recursos financeiros do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, que emprestava parte dos recursos para aquisições, sendo essa a grande irresignação de alguns setores mais esclarecidos e antiprivatistas. O atual governo federal “não se mostrou simpático” à idéia de dar prosseguimento aos processos de desestatização [e se diz antiprivatista], mas também desestatizou o Banco do Estado do Maranhão e o do Ceará [nos anos de 2004 e 2005, respectivamente]. Além disso, esse mesmo governo entregou à iniciativa privada mais de 2.500 quilômetros de rodovias federais [e aqui não há lugar para discussão se tal procedimento é ou não privatização de rodovias].

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Portanto, em maior ou menor grau, os governos brasileiros – desde 1988 – privatizaram empresas estatais, e isso é um fato. Quanto ao tema privatização, assinalam José Carlos Miranda e Maria da Conceição Tavares, que das empresas estatais privatizadas, 58,7% foram compradas por consórcios mistos com a participação equivalente de capital nacional e estrangeiro e 41% corresponderam a compras por parte de empresas e consórcios estrangeiros. A tentativa dos grupos nacionais de integrar consórcios para a disputa dos leilões de telefonia celular e operação por satélites foi malograda, como também foi a tentativa de conglomeração para os setores de equipamentos e eletrônica profissional(2). Com efeito, a pretendida redução do endividamento público não diminuiu com as privatizações desde os temos do governo Sarney. Por outro lado, as privatizações ocorridas em áreas como as telecomunicações fizeram com que houvesse aumento significativo de qualidade dos serviços, sem descuidar da modernização ocorrida no setor [afinal, o mundo vive a era tecnológica]. Queira ou não, algumas estradas “privatizadas” estão em melhores condições de tráfego [e aqui não se discute o valor do pedágio]; queira ou não, algumas agências reguladoras desempenham atividade ruim (lembre-se do constante caos aéreo, e por aí em diante); queira ou não, o Estado não vem desempenhando satisfatoriamente suas obrigações (não obstante os auxílios [as denominadas políticas sociais – Bolsa-Família]). E aqui, nesse passo, se faz importante a observação de Norberto Bobbio, ao afirmar que quando a sociedade civil sob a forma de sociedade de livre mercado avança a pretensão de restringir os poderes do Estado ao mínimo necessário, o Estado como mal necessário assume a figura de Estado mínimo, figura que se torna o denominador comum de todas as maiores expressões do pensamento liberal(3). Portanto, caso se queira partir para um debate sério acerca de propostas [e tal debate sói ocorrer em algumas democracias] não se pode jamais olvidar de que a idéia de privatização surgiu há muitos anos no Brasil, e os governos Sarney, Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e o atual não passaram incólumes.

Notas:

(1) Note-se que a Carta da República de 1967 [24/01/67], e depois com a Emenda Constitucional n. 1 [de 17/10/69], previa a possibilidade de intervenção estatal no domínio econômico, mediante lei federal, tal como consta do artigo 163.

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(2) FIORI, José L. (coord.). Estados e Moedas no Desenvolvimento das Nações.3.ª edição. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 343.

(3) Estado, Governo, Sociedade. Para uma Teoria Geral da Política. 12.ª edição. São Paulo: Editora Paz e Terra, p. 129.

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Carlos Roberto Claro é advogado em Curitiba, mestre em direito pelo Unicuritiba.