A distinção entre as esferas pública e privada é uma marca do processo civilizatório da humanidade. Mesmo antes do advento da escrita, essa distinção já estava esboçada, embora ainda no âmbito dos mores. Com a sistematização das leis, restou solidificado o direito à privacidade dos cidadãos. As sociedades modernas trataram de tornar este direito inviolável.

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As Cartas Magnas que inauguram e consolidam essas sociedades não somente reconhecem a necessidade de impor limites entre a atuação do Estado – a esfera pública – e a vida privada, como demarcam claramente os perímetros de um e de outra.

Não seria exagero, portanto, afirmar que é possível diferenciar os Estados democráticos dos totalitários pelo modo como delimitam o direito à privacidade de seus cidadãos.

A Constituição Brasileira, consagrada com muita propriedade como “Constituição Cidadã”, não fugiu ao tema. Ao contrário, é cristalina ao inscrever em seu Artigo 5.º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.”

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E, a seguir, no inciso XII, detalha: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual”.

Estaria, assim, cabalmente resguardado o direito fundamental do cidadão à sua privacidade, ressalvadas as exceções previstas pelo constituinte. Ou seja, a alienação deste direito só é admissível sob o império da lei e após a indispensável assistência de representante da Instituição Jurídica. Ocorre que a complexidade que a questão assumiu nas sociedades contemporâneas abriga nova moldura para a defesa daquele direito básico.

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Em sociedades cada vez mais tecnológicas, qualquer um, em tese, pode ter acesso a aparatos que viabilizam e até tornam banal a violação da privacidade de outrem. Trata-se, sem dúvida, de grave problema, mas não de todo insanável, uma vez que existe arcabouço jurídico para tipificar como crime as violações contra a invasão da privacidade.

A questão assume proporções alarmantes quando é o próprio Estado o ente que violenta a vida íntima de seus cidadãos. Um olhar mais acurado certamente detecta distorções inaceitáveis.

Na esteira das inovações tecnologias, o Estado, em seu furor arrecadatório, se aparelha para se transformar num arremedo do “Grande Irmão” orwerlliano, com sua azeitada estrutura técnico-operacional de computadores para cruzar informações sigilosas envolvendo os cidadãos, a pretexto de coibir sonegação ou crimes tributários.

O Estado vigilante estende suas garras por todas as partes. A próxima investida será a de instalar “chips” em todos os veículos de maneira a forçar o acerto de dívidas relativas a infrações de trânsito e inibir inadimplência de licenciamentos.

E, na ânsia de não deixar espaços vazios, buscar-se-á, igualmente, uma legislação que torne possível um cadastro universal para usuários da Internet, como se a medida, por si só, possa impedir crimes na web como a pedofilia ou o estelionato eletrônico.

O problema dessas iniciativas de captura do cidadão, à parte sua questionável eficácia, é que subvertem um conceito basilar do Direito. Em seu cerne está a noção de que todos são suspeitos até prova em contrário um estupro jurídico sob todos os aspectos. Ou seja, qualquer cidadão é, em princípio, um criminoso que deve ser monitorado permanentemente pelo Estado.

O mais danoso, no entanto, é que este conceito começa a se espraiar rapidamente, corrompendo as bases do Direito moderno. Se todos são criminosos a priori, qual a serventia que terá o direito universal de defesa, do contraditório, da presunção de inocência até que sejam esgotados todos os recursos?

Ninguém, em sã consciência, nega ao Estado o empenho em investigar, comprovar e punir crimes, particularmente os mais refinados caso dos que o vulgo designou de “crimes de colarinho branco”. O que não se pode admitir, no entanto, são desvios flagrantes, inspirados, não raras vezes, por viés ideológico e, pior, partidário.

Evidente que, desviadas dessa forma, lídimas investigações podem se apequenar em meros e inócuos espetáculos televisivos ou, muito mais nefandos, derivar em prematuros pré-julgamentos, antecipados espuriamente para a inicial fase investigatória e, até mesmo, para a etapa de instrução do processo.

Em qualquer hipótese, ressalvada a nobre missão do Estado de coibir e punir exemplarmente crimes, o que pode estar em risco é o princípio básico do direito de privacidade do cidadão.

Urge, portanto, abrir um amplo debate nacional que, sob a égide da Constituição, propicie resgatar o direito à privacidade, uma das garantias basilares para o exercício pleno da cidadania dentro do Estado de Direito.

Luiz Flávio Borges D’Urso é advogado criminalista, mestre e doutor em Direito pela USP, é presidente da Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil.