No habeas corpus 90.277-DF (2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal, j. 17/6/08) foi discutida a lisura do procedimento de seleção dos membros do Ministério Público (procuradores federais) que atuaram no famoso caso Anaconda. De acordo com a decisão do STF, “entendeu-se que todo o procedimento, desde sua origem até a instauração da ação penal perante o STJ (Superior Tribunal de Justiça) observara os critérios previamente impostos de distribuição de processos na Procuradoria Regional da República da 3.ª Região, sem que houvesse designação casuística ou criação de “acusador de exceção”.
A troca do critério numérico por outro não é suficiente para macular a essência da garantia do promotor natural, que é a atuação independente e não política.
“Aduziu-se que, na espécie, deixara-se de adotar, relativamente aos procedimentos em tramitação perante o Órgão Especial do TRF (Tribunal Regional Federal) daquela região, o critério numérico (referente ao final dos algarismos lançados segundo a ordem de entrada dos feitos naquela Procuradoria) para se assumir a ordem de entrada das representações junto ao NOE (Núcleo do Órgão Especial) em correspondência à ordem de ingresso dos procuradores no aludido núcleo.”
O fundamental é a adoção de critérios objetivos, que não dêem margem a uma seleção viciada.
O julgado acima citado adotou uma polêmica linha conservadora (no sentido da inexistência do princípio do promotor natural), com a qual (com a devida vênia) não concordamos. Sublinhou ademais que, de qualquer modo, ainda que esse princípio fosse acolhido, não teria sido violado no caso concreto.
Em que consiste o princípio do promotor natural? No seguinte: o membro do Ministério Público que deve atuar em cada processo é o que conta, pela Constituição e leis vigentes, com atribuição para desempenhar sua função no caso concreto. Se uma determinada investigação foi distribuída para a Vara “x”, promotor natural do caso é o que desempenha suas tarefas junto a essa Vara “x”.
O que se pretende alcançar com o princípio do promotor natural? O que se pretende com ele é que o exercício dessa nobre função não seja distorcida ou manipulada (sobretudo por interesses políticos ou escusos). Ele “representa a impossibilidade de alguém ser processado senão pelo órgão de atuação do Ministério Público dotado de amplas garantias pessoais e institucionais, de absoluta independência e liberdade de convicção, com atribuições previamente fixadas e conhecidas”.
Não existisse a garantia do promotor natural e certamente muitos procuradores gerais tenderiam ao abuso (designando “determinado” promotor ou procurador para “certos” casos “especiais”).
Existe o princípio do promotor natural no ordenamento jurídico brasileiro? A posição tradicional (e conservadora) do STF é no sentido negativo: “o STF, por maioria de votos, refutara a tese de sua existência (HC 67.759/RJ, DJU de 1.º/7/93) no ordenamento jurídico brasileiro, orientação essa confirmada, posteriormente, na apreciação do HC 84468/ES (DJU de 20/2/2006)”.
Com a devida vênia, não pensamos dessa maneira. Depois da Lei Orgânica do Ministério Público (Lei 8.625/93) já não se pode discutir a existência no direito brasileiro do princípio do promotor natural (cf. STF, HC 67.759 e RT 726, p. 588).
O princípio do promotor natural impede a designação de membro do Ministério Público para atuar em casos específicos? Não. É válida a designação de promotor feita pelo Chefe da Instituição, quando dentro da lei (concordância do promotor natural com a designação e que esta não conduza à criação de um promotor de exceção). Não é possível designar promotor por critérios políticos ou pouco recomendáveis (RT 755, p. 566). O que se deve evitar é a designação casuística ou manipulações casuísticas ou designações seletivas, fora dos critérios legais (RT 724, p. 551). Respeitados esses limites, a designação de promotor é admitida pelo ordenamento jurídico brasileiro (embora o correto seja evitar que isso aconteça).
Luiz Flávio Gomes é professor doutor em Direito penal pela Universidade de
Madri e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).