Luiz Flávio Gomes
Também no âmbito dos delitos previdenciários e tributários aplica-se o princípio da insignificância. O critério central, em ambos os delitos, é o mesmo: é o valor que o Poder Público estima como razoável para ajuizar uma ação de execução fiscal (STJ, REsp 573.398, rel. Min. Felix Fischer, j. 2/9/04).
Nos delitos previdenciários o limite era de R$ 2.500,00. Depois (a partir do art. 4.º da Portaria 4.943/1999, do Ministério da Previdência Social) passou para R$ 5.000,00.
CASO CONCRETO: O Egrégio Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (Recurso em Sentido Estrito n. 2001.04.01.080428-0-PR, Volker de Castilho, DJU de 30/1/02, p. 1074) reconheceu que o limite correto é de R$ 5.000,00: ?Aplica-se o princípio da insignificância se o débito remanescente do parcelamento avençado com base na MP 1571/91 for igual ou inferior a R$ 5.000,00 (cinco mil reais) ou 5.117,71 ufires, mesmo que incluído no REFIS, uma vez que a Portaria n.º 4.943/99, de 4 de janeiro de 1999, do MPS estipula que a dívida ativa do INSS de valor inferior ao referido não será ajuizada. No caso dos autos o montante ainda devido é de R$ 2.722,82 equivalente a 2.558,80 ufires, estando, portanto, abaixo do valor limite perseguido pelo Fisco?.
Agora, por força da Portaria 296, de 8/8/07, o valor se alterou para R$ 10.000,00. Até esse patamar deve-se reconhecer o princípio da insignificância, inclusive retroativamente (por se tratar de norma mais favorável).
O art. 168-A, § 3.º, segunda parte, assim como o art. 337-A, § 2.º, inc. II, do CP, não falam no princípio da insignificância. Respeitado o valor do ajuizamento da execução fiscal (agora de R$ 10.000,00), poderia o juiz conceder perdão judicial ou aplicar tão-somente a pena de multa. Essa lei penal, se fosse secamente interpretada, levaria a uma condenação penal ou a um processo (onde no final o juiz perdoaria o culpado). O programa aparente da norma, entretanto, nem sempre se corresponde com o programa de incidência real da norma.
A lei é o princípio, o meio e o fim de toda interpretação, salvo quando ela conflita com a Constituição Federal (ou seja: com o Direito). Havendo antagonismo entre a letra da lei e o Direito, prepondera o último (que deve sempre ser interpretado conforme a Constituição).
Se de um lado é certo que o legislador facultou ao juiz (até o valor de R$ 10.000,00), nos delitos previdenciários, a concessão de perdão judicial ou aplicação só da multa, de outro, não menos correto é que pela Portaria 296, de 8/8/.07, do MPS, a dívida ativa (em favor do INSS) até esse montante não deve ser executada, exceto (a) quando, em face da mesma pessoa, existirem outras dívidas que, somadas, superem esse montante, ou (b) quando o crédito é originário de crime.
Ora, se esse valor é insignificante para o fim de ajuizamento da execução fiscal (se o ente público entende que não vale a pena executar qualquer débito até esse patamar de R$ 10.000,00), com muito mais razão é irrelevante para fins penais. Corretíssima segundo nossa perspectiva (já afirmada no livro Crimes previdenciários, São Paulo: RT, 2001, p. 69) a jurisprudência brasileira que vem aplicando o Direito (justo) não a letra seca da lei.
Todos os débitos previdenciários não recolhidos aos cofres do INSS até esse total (R$ 10.000,00) não constituem infração penal. Configura fato atípico (em seu sentido material, consoante o HC 84.412-SP, do STF). Justamente por isso é que não se deve aplicar a pena de multa ou conceder o perdão judicial (nos termos do CP vigente). O fato atípico está fora do Direito penal e não permite sequer o desenvolvimento da ação penal.
O limite de R$ 10.000,00, de qualquer modo, serve de guia para o reconhecimento do princípio da insignificância (apenas) nos crimes previdenciários. Mas não seria correto dizer que é um critério de validade ampla, geral e irrestrita. Em matéria de insignificância (penal) cada caso é um caso. Se para o INSS R$ 10.000,00 é um quantum insignificante, para quem ganha salário mínimo (por exemplo) é um valor exageradamente alto. Direito penal é (deve sempre ser) Direito do caso concreto. Cada caso é um caso.
De outro lado, impõe-se enfatizar: a lei penal nem sempre retrata o Direito penal. A lei muitas vezes não se corresponde com o Direito. E este sempre há de preponderar. Formalmente a conduta de quem deixa de recolher aos cofres do INSS a contribuição previdenciária de valor inferior a R$ 10.000,00 está realizando o tipo legal (CP, art. 168-A). Mas tipo legal não é tipo penal. Subsunção formal não se confunde com a adequação típica material. O Direito penal já não se coaduna com a dogmática formalista do século XX. Por força do princípio da intervenção mínima nem toda ofensa ao bem jurídico merece sanção penal. Os critérios de política criminal (intervenção mínima, por exemplo) fazem parte do Direito penal (Roxin). Esse é o novo Direito penal, que se mostra antagônico frente ao Direito penal formalista e literalista do século passado (cf. L. F. GOMES et alii, Direito penal – Introdução, v. 1, São Paulo: RT, 2007).
No que diz respeito aos delitos tributários, na esfera federal, o valor primeiro era de R$ 1.000,00. Com a entrada em vigor da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, esse valor foi alterado para R$ 2.500,00.
Até esse montante entendia a jurisprudência que não se tratava de valor lesivo (ofensivo) de modo relevante aos cofres públicos. Formalmente trata-se de conduta típica, mas materialmente não está presente o requisito do resultado jurídico relevante, que consiste, no caso, no interesse fiscal da Administração Pública (STJ, HC 34.281-RS, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, j. 8/6/04).
Com o advento da Portaria 49, de 1 de abril de 2004, do Ministro da Fazenda, que autorizou a não inscrição como dívida ativa da União de débitos com a Fazenda Nacional de valor até R$ 1.000,00 e (b) o não ajuizamento das execuções fiscais de débitos até R$ 10.000,00, esse último valor passou a ser decisivo para o reconhecimento do princípio da insignificância nos crimes tributários (federais). Como se vê, o valor de R$ 10.000,00 passou a ser comum tanto para os delitos previdenciários como para os tributários (no âmbito federal). É ele que rege a incidência do princípio da insignificância nesses delitos.
Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Ipan – Instituto Panamericano de Política Criminal, consultor e parecerista, fundador e presidente da Rede LFG Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes (1.ª Rede de Ensino Telepresencial do Brasil e da América Latina – Líder Mundial em Cursos Preparatórios Telepresenciais) – www.lfg.com.br