Toda a população brasileira foi ?acordada? com o alardeamento por toda a imprensa de que uma ?decisão? prolatada no E. TSE poderá ensejar a cassação do mandato de 37 Deputados.
A anunciada ?decisão? é decorrente de Consulta formulada pelo então Partido da Frente Liberal, ao Tribunal Superior Eleitoral, acerca – em extremo resumo – da vigência ou não em nosso ordenamento jurídico do instituto da Fidelidade Partidária.
A consulta foi formulada, ipsis literis, com o seguinte teor:
Considerando o teor do art. 108 da Lei n.º 4.737/65 (Código Eleitoral), que estabelece que a eleição dos candidatos a cargos proporcionais é resultado do quociente eleitoral apurado entre os diversos partidos e coligações envolvidos no certame democrático.
Considerando que é condição constitucional de elegibilidade a filiação partidária, posta para indicar ao eleitor o vínculo político e ideológico dos candidatos.
Considerando ainda que, também o cálculo das médias, é decorrente do resultado dos votos válidos atribuídos aos partidos e coligações.
INDAGA-SE:
Os partidos e coligações têm o direito de preservar a vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda?
A Relatoria do caso coube ao Ministro César Asfor Rocha e a resposta que sobreveio foi para determinar que:
Com esta fundamentação respondo afirmativamente à consulta do PFL, concluindo que os Partidos Políticos e as coligações conservam o direito à vaga obtida pelo sistema eleitoral proporcional, quando houver pedido de cancelamento de filiação ou de transferência do candidato eleito por um partido para outra legenda. (destacamos) O entendimento do Eminente Ministro teve por base, uma melhor interpretação dos princípios insculpidos nos artigos 14, § 3.º e 17, § 1.º, da Constituição Federal, sendo parte integrante da mesma a ilação de que:
(…) parece-me equivocada e mesmo injurídica a suposição de que o mandato político eletivo pertence ao indivíduo eleito, pois isso equivaleria a dizer que ele, o candidato eleito, se teria tornado senhor e possuidor de uma parcela da soberania popular, não apenas transformando-a em propriedade sua, porém mesmo sobre ela podendo exercer, à moda do exercício de uma prerrogativa privatística, todos os poderes inerentes ao seu domínio, inclusive o de dele dispor.
Todavia, parece-me incogitável que alguém possa obter para si – e exercer como coisa sua – um mandato eletivo, que se configura essencialmente como uma função política e pública, de todo avessa e inconciliável com pretensão de cunho privado.
Nessas brevíssimas linhas não nos atrevemos a ?julgar? o acerto ou desacerto de tal posicionamento ou do voto divergente (do Ministro Marcelo Ribeiro). Pretendemos simplesmente chamar a atenção do perigo de apressadas conclusões que daí advieram.
Com o conhecimento do decidido, profundo de alguns e superficial da maioria -, não faltaram os rumores de que ?os deputados traidores serão cassados?, o ?PFL e o PSDB recomporão suas bancadas?, ?serão profundas as modificações nas composições das Câmaras Municipais e das Assembléias Legislativas?, etc. Cremos, no entanto, que o problema – como de costume no ramo jurídico – não requer tão singela solução.
Parece-nos sim, a grosso modo, que se mantida a interpretação dada na consulta quando de sua submissão -quer na forma de controle abstrato ou concreto – ao Colendo Supremo Tribunal Federal, caso os Parlamentares eleitos por uma determinada agremiação política venham a requerer cancelamento de sua filiação ou transferência, perderão uma de suas condições de exercício do mandato (manter-se filiado à agremiação política originária) e serão obstados desse mesmo exercício.
Dissemos que isso nos parece ?a grosso modo?, porque também essa conseqüência terá condicionantes.
O primeiro condicionante é de que a decisão que obstaculizará o exercício do mandato – Judicial ou Administrativa – deverá ser precedida de processo no qual se dará aquele que cancelou ou transferiu sua filiação o mais amplo direito de defesa, sob pena de afronta ao art. 5.º, LV da Constituição Federal.
Essa condição certamente deverá ser atendida para se cumprir a ordem constitucional, mas ganha especial relevo porque da própria ?decisão? consta que ?(…) haver[á] hipóteses em que a mudança partidária, pelo candidato a cargo proporcional eleito, não venha a importar na perda de seu mandato, como, por exemplo, quando migração decorrer da alteração do ideário partidário ou for fruto de uma de uma perseguição odiosa?.
Então, se ?(…) [há] hipóteses em que a mudança partidária, pelo candidato a cargo proporcional eleito, não venha a importar na perda de seu mandato (…)?, no processo noticiado deverá se averiguar, dentre outras certas celeumas jurídicas e fáticas, se o cancelamento ou transferência de filiação se subsume à espécie que enseja a mencionada perda da condição para o exercício do mandato. E isso tudo, obviamente, com o atendimento, repise-se, aos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal.
De plano já podemos prever, inclusive, que haverá amplo debate doutrinário e jurisprudencial para se definir quais são os cancelamentos e transferências de filiação que se amoldarão às espécies que ensejarão ou não a perda de condição para o exercício do mandato.
Note-se, ainda, que a própria decisão apenas exemplifica duas situações em que não haverá a perda da condição para o exercício do mandato – ?(…) quando migração decorrer da alteração do ideário partidário ou for fruto de uma perseguição odiosa (…)? – e se o rol é exemplificativo é porque outras existem e sobre as mesmas deverão se deter os atores da cena (as Casas Legislativas, as partes, seus Advogados e o Poder Judiciário).
Pensamos também que acerca de um segundo condicionante haverá um amplo debate: o ?mandamento normativo? constante da decisão aplica-se às situações pretéritas e futuras ou somente às futuras?
A determinação se aplica aqueles 37 Deputados a que tanto a imprensa fez menção ou somente aos Deputados que a partir de agora se comportarem em desacordo com a ?ordenação recém estabelecida??
Da ?decisão? consta, como já disse, até mesmo exemplos de comportamentos que não se subsumem à sua carga normativa (mandamento, imposição, etc), mas nela não se fez menção ao termo a quo, ou seja, ao alcance temporal de sua aplicabilidade.
Também para esse questionamento há um ingrediente apimentado. Conforme fez constar em seu voto divergente o Ministro Marcelo Ribeiro, existem precedentes jurisprudenciais onde se afirma(va) que no Brasil não se aplica(va) o instituto da Fidelidade Partidária, inclusive um recentíssimo de lavra do Ministro Gilmar Mendes do Supremo Tribunal Federal que foi assim ementado:
EMENTA: Mandado de Segurança. 2. Eleitoral. Possibilidade de perda do mandato parlamentar. 3. Princípio da fidelidade partidária. Inaplicabilidade. Hipótese não colocada entre as causas de perda de mandato a que alude o art. 55 da Constituição. (…) (MS 23.405-9 GO, de 22/03/2004)
Assim podemos estar diante do seguinte: (i) a interpretação dantes dada ao regramento jurídico da questão era de que o ordenamento brasileiro não abarcava o instituto da Fidelidade Partidária, porém, (ii) com a decisão provinda do E. TSE passou-se a entender -com ?força normativa? – que vige no ordenamento jurídico brasileiro o Princípio da Fidelidade Partidária, e isso sem que tenha havido qualquer modificação legal ou constitucional.
Quer nos parecer, obviamente, que aqueles deputados que já ?trocaram de camisa? não estariam no foco de irradiação da determinação, pois, o entendimento contrário implicaria em afrontar o Princípio da Segurança Jurídica que, entre outras limitações, veda a retroatividade das leis.
A bem dizer, a incidência dessa vinculante ?decisão? com efeitos pretéritos atenta contra a Segurança Jurídica, princípio da maior estatura no Estado Democrático de Direito e que, verbi gratia, limita até mesmo a atuação do Supremo Tribunal Federal, corte máxima brasileira, ao informar a modulação dos efeitos temporais da declaração de inconstitucionalidade de atos normativos. Há, portanto, que se esperar prudência ao se decidir e, em respeito às regras e entendimentos válidos por ocasião das eleições, não alterá-los em detrimento do resultado decorrente do exercício do voto.
Tecidas essas breves observações, vale lamentar que na resposta da Consulta não se tenha tratado da questão da Segurança Jurídica e assim se adiantado acerca de um debate que, certamente, terá seu epílogo na Colenda Corte.
José Ricardo Biazzo Símon é advogado. Mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP.
Renata Fiori Puccetti Klotz é advogada. Especialista e Mestranda em Direito Administrativo pela PUC/SP.