Prezado leitor, você também ficou enojado ao ler o título deste artigo? Foi essa a minha exata sensação, quando visitei uma tradicional confeitaria da cidade, no final de maio. Deparei-me com uma lembrança da primeira infância: algo como um pavê de chocolate com recheio de bolacha, chamado “preto de alma branca”. Para minha surpresa, apesar da evolução mundial, o doce continuava o mesmo: bicolor e racista!

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Levei minha indignação e fome para uma das panificadoras do bairro, onde compro regularmente. Enquanto aguardava minha senha, observava a vitrine das tortas. De repente, saltou-me aos olhos e lá estava, novamente, a discriminação estampada. Mas dessa vez, ligeiramente disfarçado, o racismo vinha em formato arredondado, ainda coberto com chocolate, e na etiqueta reinava o nome inconstitucional da iguaria: “torta preta d’alma branca”. Ufa! Então o preconceito agora era direcionado somente à segregação das tortas e não das pessoas!

Sarcasmos à parte, essa é uma receita tradicional no Brasil, que chegou ao país junto com os confeiteiros da Corte de Portugal. Tempo em que os negros eram seqüestrados em seus países, escravizados, apanhavam em praça pública, expostos no tronco e eram considerados mercadorias.

Época em que se reputava por elogio se referir a uma pessoa da raça negra, como sendo alguém de “alma branca”. Racismo nojento e disfarçado de boa-vontade, em uma expressão abominável, de tom agressivo-passivo.

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A abolição da escravatura, em terras brasilis, foi oficializada em 1888 e hoje o Brasil se congratula por ser um país de tolerância e co-existência pacífica dos povos e raças, uma verdadeira festa multicultural.

Porém, é preciso que se indague se o racismo não se acha, em verdade, oculto no vocabulário politicamente correto, no receio de ser pego em um ato falho, na condescendência com as diferenças, na persistência do escopo assimilatório típico modernista-liberal, ou em fracos disfarces do mercado.

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A verdadeira superação das diferenças e do preconceito é um estado de consciência e de alma; não uma mera atitude exteriorizada. Logicamente, as condutas positivas são essenciais para o desenvolvimento social e das pessoas humanas, independente da real motivação dos sujeitos.

O problema, contudo, do agir sem convicção dos valores éticos em jogo, é que, cedo ou tarde, o preconceito começa a escapar para fora do tapete, começa a colocar o nariz para fora das máscaras, e não somente em nomes discretos de guloseimas.

Persistem movimentos como a supremacia branca, brasileiros separatistas, líderes do MST que viajam para o Oriente Médio prestar apoio ostensivo a terroristas, assassinatos de travestis. Há poucas semanas, em razão da luta pelo poder interno, restou estampada a consistente existência de neonazistas, e não apenas no Paraná ou ocultos nos porões revolucionários, mas bem infiltrados na política e cargos de relevância.

– “Mas é só uma torta”, há quem diga. Tudo bem, relevemos a torta, por agora. Porém, o que vem a seguir? Uma quiche de bacon chamada “judeu assimilado”? Perdoem-me os leitores pela pressão no discurso, mas se o caso da torta não me atinge diretamente pela ascendência genética, certamente me afeta como cidadã de um país igualitário. E se da interdependência social de Durkheim deriva uma relevante lição, esta se resume em uma frase: tudo, na vida, é uma questão de tempo. O que hoje se afigura como um sintoma de problema setorizado, amanhã se espraia por toda a comunidade.

O racismo velado e não debatido é potencialmente tão perigoso quanto a discriminação ostensiva.

Infelizmente, o preconceito, reina, sim, encalacrado em mentes e almas. Durante a eleição de Barack Obama, ouvi comentários absurdos, invariavelmente precedidos pela mesma frase, algo no estilo: – “Não é que eu seja racista, mas …”.
Soa familiar?

Quando se pensava impossível a repetição do Holocausto, em plena década de 90 ocorria uma “limpeza étnica” no Kosovo. E nenhuma pressão internacional conseguiu impedir. Discriminação é detestável em qualquer nível e grau, em qualquer lugar do planeta. A ofensa a um, ofende a todos.

Pensando a questão sob a perspectiva jurídica da liberdade de iniciativa, historicamente, nos tempos do regime nazi, quando a ameaça começava a mostrar sua face real, as lojas ostentavam placas, vedando a entrada de judeus e de animais, nessa ordem e nessa cumulação, cenário bem retratado no filmes La Vitta è Bella e Concorrenza Sleale, disponíveis em DVD. Contudo, relembra a história que, se por um lado havia a proibição do acesso aos bens de consumo, imperando, na iniciativa privada, a informação política de que o dinheiro hebreu não era bem-vindo no comércio, de súbito (para os desavisados) emergia o confisco das propriedades dos judeus.

No Brasil, houve um processo inverso. Quando o comércio negreiro se tornou desinteressante ou impossível, então, em símile esteira da coisificação do ser humano, tais indivíduos foram literalmente forçados a ingressar no mercado de consumo. A suposta inclusão social não tratou da questão essencial a dessensibilização dos preconceitos. Era, antes, uma política pública de “assalariamento”, para angariar mais consumidores.

Responsabilidade social é obrigação jurídica, cujo discurso mínimo se encontra na promoção da dignidade humana e do bem comum, sendo vedado às empresas discriminar stakeholders e shareholders, seja em razão do gênero, opção sexual, raça, cor, religião. Isto excede à mera negativa de atendimento ou contratação. Eis aí as sutilezas de um mercado ético.

Não estranhei os certificados de “empresa solidária”, que a mesma panificadora exibia em sua parede. Mas, responsabilidade social não se confunde com filantropia e nem se esgota na reciclagem do lixo. A própria inclusão de gênero, no quando funcional, é ótima, mas não exauriente. Os gestores devem estar atentos a todos os processos e práticas existentes no meio ambiente empresarial, coibindo o mínimo sinal de intolerância e discriminação. Afinal, invocando a herança da cultura cristã, dos ensinamentos de Jesus aos seus discípulos, acerca da hipocrisia, emerge a mais apropriada das metáforas: “um pouco de fermento, leveda toda a massa”.

Repito: não se discute a relevância social das ações afirmativas (questionam-se alguns benefícios pontuais) ou da rotina politicamente correta, mesmo que sua única motivação recaia sobre a observância da lei.

Mas esqueletos no armário também ocupam espaço, levando à lógica conclusão de que é preciso trabalhar diretamente com as pessoas humanas e não somente com suas condutas. As raízes históricas do preconceito precisam ser extirpadas, para que não cresçam como o joio em meio ao trigo, vindo a se perder toda uma semeadura de melhores tempos.

Coluna sob responsabilidade dos membros do grupo de pesquisa do Mestrado em Direito do Unicuritiba: Liberdade de Iniciativa, Dignidade da Pessoa Humana e Proteção ao Meio Ambiente Empresarial: inclusão, sustentabilidade, função social e efetividade, liderado pelo primeiro pesquisador, advogado e professor doutor Carlyle Popp e subliderado pela advogada e professora M.Sc. Ana Cecília Parodi. grupodepesquisa.mestrado@ymail.com. Esta coluna tem compromisso com os Objetivos para o Desenvolvimento do Milênio

Ana Cecília Parodi é mestre em Direito Econômico e Socioambiental pela PUCPR. Advogada com atuação especializada em Direito Civil e Empresarial. Professora de Direito Civil, em cursos de Pós-Graduação. Autora de diversas obras jurídicas. adv.anacecilia@yahoo.com.br