Desde que instituída no Brasil, a ação popular foi elevada à condição de imperativa forma de controle jurisdicional dos atos administrativos, sempre com o propósito principal de reprimir condutas lesivas ao patrimônio público(1).
Na Constituição de 1988 a realidade não foi diferente. Segundo seu art. 5.º, inc. LXXIII, ?qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural?.
Percebe-se que o pano de fundo da ação popular continuou sendo a defesa de atos que, de alguma forma, causem lesões ao patrimônio público. A diferença é que, com a ampliação do campo de abrangência do instituto feita pela atual Constituição, tais prejuízos passaram a abranger aspectos ligados ao patrimônio histórico, cultural, ambiental e até mesmo moral(2).
Partindo dessa linha evolutiva, além das condições gerais da ação tradicionalmente conhecidas – interesse de agir, possibilidade jurídica do pedido e legitimidade de parte – doutrina(3) e jurisprudência(4) consolidaram três pressupostos específicos para o manejo da ação popular. São eles: (a) ilegalidade ou imoralidade do ato praticado pelo agente; (b) lesividade do patrimônio público; e (c) condição de cidadão em gozo de seus direitos políticos.
As maiores discussões giram em torno do preenchimento dos dois primeiros, representados pelo binômio ilegalidade/lesividade.
Quanto à ilegalidade e imoralidade do ato questionado, deve-se partir estrita e objetivamente dos preceitos consignados pela Lei n.º 4.717/65, especificamente no que dispõem seus artigos 2.º, 3.º e 4.º.
No primeiro (art. 2.º), ao enumerar os vícios de incompetência, forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio de finalidade, acabou-se por consignar causas genéricas de nulidade dos atos administrativos questionados pela medida. No segundo (art. 3.º), ao dispor que os atos lesivos que não se enquadram nesses vícios estão sujeitos ao exame segundo as prescrições legais pertinentes, trouxe uma causa residual de anulabilidade de tais atos. No terceiro (art. 4.º), descrevendo hipóteses peculiares de ilegalidade, concebeu-se causas específicas de nulidade dos mesmos atos.
A subsunção entre os conceitos de fato e tais preceitos normativos influi diretamente em fatores de suma importância para o correto deslinde da ação popular. A partir de então, é possível definir qual o ônus atribuído ao autor da ação e quais as possíveis sanções cabíveis ao agente público acusado.
Por outro lado, além da ilegalidade, há uma tendência constatada sobretudo após o advento da Constituição Federal de 1988, no sentido de se elevar erroneamente a imoralidade como fundamento autônomo da ação popular.
Nesses casos, ao contrário das hipóteses de ilegalidade, cujo exame, como dito, se dá de forma objetiva, na moralidade, é imprescindível a análise do elemento subjetivo que fomentou a conduta questionada. Em outras palavras, para auferir se um ato é imoral, é necessária a constatação da vontade do administrador (elemento subjetivo), a partir de uma relação entre meios utilizados e fins perseguidos.
A questão que se põe é que, daí a se elevar a imoralidade como causa capaz de, por si só, gerar a nulidade de determinado ato administrativo e, conseqüentemente, condenar o responsável ao ressarcimento de possíveis prejuízos, há um caminho muito longo a se percorrer.
O motivo nos é dado por Hely Lopes Meirelles ao afirmar que ?a noção de pura ?imoralidade?, porém, nos parece excessivamente vaga e subjetiva para que se permita o ajuizamento de ação popular. A moral pura, quando afastada do direito positivo, envolve crenças pessoais, inclusive religiosas, que podem variar de pessoa para pessoa. Permitir que o juiz invalide um ato formalmente legal da Administração, sob o único fundamento de que este ato seria imoral, implica em colocar o administrador público em permanente incerteza?(5).
Dessa forma, mesmo que a partir de um juízo subjetivo o ato se demonstre, a princípio, contrário à moralidade, não há como negar que, para a procedência de ação popular, é imprescindível que, além de imoral, esse mesmo ato seja também ilegal.
O segundo pressuposto específico da ação popular (lesividade ao patrimônio público) é tido como elemento indispensável para que o ato se submeta ao controle jurisdicional, como reconhecem Eros Roberto Grau(6) e Péricles Prade(7) em trabalhos dedicados especificamente ao tema.
Não se nega, todavia, que a Lei da Ação Popular conferiu um certo privilégio àqueles atos em que se tem causas específicas de nulidade, tipificados em seu art. 4º. Mesmo diante de tal prerrogativa, o que se tem é uma presunção iuris tantum de lesividade somente para declaração de sua nulidade (e não para condenação ao ressarcimento). Nesse caso, não se deixa de exigir tal pressuposto. Simplesmente o presume existente, invertendo o ônus da prova para sua desconstituição.
Como afirma Hely Lopes Meirelles, ?na conceituação atual, lesivo é todo ato ou omissão administrativa que desfalca o erário ou prejudica a Administração, assim como o que ofende bens ou valores artísticos, cívicos, culturais, ambientais ou históricos da comunidade. E essa lesão tanto pode ser efetiva quanto legalmente presumida, visto que a lei regulamentar estabelece casos de presunção de lesividade (art. 4.º), para os quais basta a prova da prática do ato naquelas circunstâncias, para considerar-se lesivo e nulo de pleno direito (STF, RTJ 103/683). Nos demais casos, impõe-se a dupla demonstração da ilegalidade e da lesão efetiva ao patrimônio protegível pela ação popular. Sem estes três requisitos -condição de eleitor, ilegalidade e lesividade -, que constituem os pressupostos da demanda, não se viabiliza a ação popular?(8).
É que, na ação popular, a tutela jurisdicional pode se manifestar através de pedido desconstitutivo (declaração de nulidade do ato administrativo impugnado) e pedido condenatório (condenação dos responsáveis ao ressarcimento dos danos causados). Somente no primeiro é que se admite a presunção relativa de lesividade. No segundo, sua comprovação é medida imperial.
O tema foi analisado com erudição pelo hoje Min. do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, nos seguintes termos: ?podemos agora distinguir, nitidamente, dois efeitos na ação popular: (1) a anulação ou declaração da nulidade do ato lesivo (lesividade provada ou lesividade presumida) e (2) a condenação dos réus ao pagamento de perdas e danos decorrentes da prática do ato. Ao primeiro efeito respeitam os arts. 2.º e 4.º da Lei 4.717/65; ao segundo, o art. 11 da mesma Lei 4.717/65. Admite-se, nos casos do art. 4.º, a declaração de nulidade independentemente da comprovação da lesividade do ato. Não se pode admitir, contudo, a condenação dos réus ao pagamento de perdas e danos decorrentes de lesão apenas presumida. Essa condenação reclama a efetiva comprovação da lesividade do ato. Sem dano comprovado inexiste responsabilidade civil, ainda que possa haver a declaração da nulidade do ato, nos casos do art. 4.º?(9).
Diante disse, é possível elaborar uma síntese conclusiva do raciocínio ora exposto.
Quanto à ilegalidade/imoralidade na ação popular, temos as seguintes conclusões: (a) a verificação de ilegalidade do ato questionado em ação popular deve partir de uma análise objetiva dos artigos 3.º (causas gerais de nulidade), 4.º (causas residuais de anulabilidade) e 5.º (causas específicas de nulidade) da Lei n.º 4.717/65; (b) o exame da moralidade, além dessa análise objetiva, avança à vontade perseguido pelo agente (elemento subjetivo), a partir de uma relação de meio empregado e fim buscado; e (c) para a procedência da ação popular por afronta ao princípio da moralidade, o ato deve passar pelo exame negativo de legalidade.
Já quanto à lesividade do patrimônio público, temos que: (a) em geral, a prova da efetiva lesividade é uma das condições da ação popular, mesmo após o advento da Constituição de 1988; (b) a Lei 4.717/65 admite presunção relativa de lesividade às condutas arroladas por seu art. 4.º, somente para fins de declaração de nulidade dos atos questionados; e (c) para fins de condenação ao ressarcimento dos prejuízos causados ao erário (art. 11 da Lei de Ação Popular), a exigibilidade de prova da lesividade é ainda mais evidenciada.
Na prática, entretanto, não é difícil ver a ação popular ser desvirtuada por interesses políticos secundários.
Notas:
(1) Assim, na Constituição de 1934, seu art. 113, § 38 dispunha que ?qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, Estados ou dos Municípios?. No Texto Constitucional de 1946, tinha-se que ?qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados, dos Municípios, das entidades autárquicas e das sociedades de economia mista? (art. 141, § 38). A Constituição de 1967 estabelecia que ?qualquer cidadão será parte legítima para propor ação popular que vise a anular atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas? (art. 150, § 31). Essa mesma redação foi mantida pela Emenda Constitucional nº 1, de 1969.
(2) Esse amplo conceito de patrimônio já era defendido com precisão por M. Seabra Fagundes durante a vigência da EC n.º 1/69 e pela própria Lei n.º 4.717/65 (art. 1.º, § 1.º, com a redação dada pela Lei n.º 6.513/77). Cf. M. Seabra Fagundes, O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário, 5.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 369.
(3) Cf. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Direito Administrativo, 19.ª ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 751; Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, 29.ª ed., São Paulo: Malheiros, 2006, p. 132-4; Carlos Thompson Flores, ?Ação popular constitucional pressupostos que autorizam seu ajuizamento?, RP 61/218.
(4) Cf., dentre outros, TJ/PR, Acórdão n.º 20697, Rel. Dês. Prestes Mattar, j. 21/2/2006; TJ/MG, AC n.º 194.070-9/00, Rel. Des. Garcia Leão, in: Luís Roberto Barroso, Constituição da República Federativa do Brasil Anotada, 4.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2003, p. 185.
(5) Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, p. 136
(6) Eros Roberto Grau, ?Requisito da lesividade na ação popular?. In: Celso Antônio Bandeira de Mello (coord.), Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 339.
(7) Péricles Prade, ?Lesividade e ilegalidade como pressupostos da ação popular constitucional?, RP 42/259-70.
(8) Hely Lopes Meirelles, Mandado de Segurança, p. 125.
(9) Eros Roberto Grau, ?Requisitos da Lesividade na Ação Popular?, p. 341.
Fábio Rodrigo Victorino é advogado. frvictorino@uol.com.br