Discurso proferido na abertura do Encontro Brasileiro sobre Prerrogativas Profissionais dos Advogados – Curitiba, 24.06.2004
Esta é uma assembléia. Uma grande assembléia de caráter permanente e itinerante com o objetivo de identificar e denunciar, em todo o território nacional, as violações contra as prerrogativas funcionais que a Constituição, as leis e a tradição de nosso país têm conferido aos advogados durante o curso da História de nossas instituições políticas e culturais.
A secional paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil, sob a liderança do presidente Manoel Antônio de Oliveira Franco e o valioso apoio do Conselho e outras entidades representativas, promove este Encontro Brasileiro com o objetivo de denunciar graves violações às prerrogativas profissionais dos advogados. O evento marca, também, os dez anos do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, elaborado e discutido durante a gestão do presidente José Roberto Batochio.
Em artigo de imprensa, recentemente publicado, afirmei que atualmente, inúmeras apurações de fatos tidos como delituosos sofrem a interferência e não raro o combustível ideológico da mídia que age ao lado e muitas vezes à frente dos agentes públicos, num cenário de preconceito marcado por abusos da chamada imprensa investigativa.
Um Estado Democrático de Direito deve proteger a liberdade de comunicação dos fatos socialmente relevantes. A Constituição declara que nenhuma lei conterá dispositivo que possa embaraçar a “plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social …” (art. 220, § 1.º). Mas antes de encerrar tal proclamação, a mesma norma adverte: “observado o disposto no art. 5.º, IV, V, X, XIII E XIV”. E o inciso X afirma: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.
E como ficam esses direitos da personalidade quando meros suspeitos são apontados publicamente como culpados? A Constituição estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença condenatória” (art. 5.º, LVII), isto é, quando não couber mais recurso contra a condenação. É preciso subverter o princípio da presunção de inocência para que detalhes da investigação preliminar atendam ao dever de informar?
Certos profissionais da mídia e muitos juristas de plantão compõem a vasta fauna dos juízes paralelos, ou seja, todos os que se consideram capazes de decidir sobre as condutas alheias com o mesmo peso de uma sentença irrecorrível. Nas áreas humanas e sociais é comum a prática de um journalisme à sensation repleto de clichês acerca do endurecimento da lei e do estímulo às expedições punitivas. Esses esquadrões de justiçamento sumário transformam a notícia em libelo. Âncoras e outros especialistas da informação usam a palavra como lâmina de guilhotina a ceifar a honra e a dignidade das pessoas contra as quais existe a análise incipiente de um fato ilícito. Os juízes paralelos são os apóstolos da suspeita temerária e os militantes da presunção de culpa. Muitos delegados de Polícia, instigados pela imprensa para opinar sobre inquéritos que presidem, excedem-se nas entrevistas comprometendo a eficácia das diligências e a respeitabilidade do cargo. Alguns membros do Ministério Público opinam abertamente sobre fatos em exame, assumindo uma espécie de compromisso com uma das versões do episódio. Essa conduta anula a imparcialidade que deve ser inerente aos agentes da nobre instituição que tem, entre os seus mais altos objetivos, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, como, por exemplo, o reconhecimento da inocência de suspeitos ou indiciados. A denominada lei da mordaça, ou seja, o projeto que pretende restringir a liberdade de informação por parte dos agentes públicos que apuram fatos delituosos, não é a solução para esse problema que pode e deve ser resolvido com as regras legais e éticas já existentes.
É também na classificação dos juízes paralelos que despontam muitos deputados e senadores, usando a Comissão Parlamentar de Inquérito – órgão de notável relevo institucional e democrático – como passarela de vaidades e corredor de abusos, imitando grotescamente os magistrados da Inquisição que reuniam na mesma pessoa as funções de investigar, acusar e julgar.
A divulgação açodada de informações e os tribunais parlamentares ditam as condenações antecipadas e nas quais a prisão preventiva – com base no suposto clamor público – é um efeito traumático na vida de muitas pessoas que, acusadas hoje, podem ser absolvidas amanhã.
Mas a sentença ética da sociedade será revista?
E os danos materiais, morais e espirituais desses novos tipos de erro judiciário, quem os irá reparar?
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No I Encontro Brasileiro dos Advogados Criminalistas, coordenado no ano de 1993 pelo colega doutor Elias Mattar Assad e do qual resultou o nascimento da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas, entidade presidida pelo colega doutor Luiz Flávio Borges D’Urso, tive oportunidade de afirmar que “o discurso político do crime é a exploração da violência. É a exploração do crime! Não no interesse da preservação da segurança individual e coletiva ou com a preocupação de atenuar o sentimento de insegurança. O discurso político do crime é um instrumento utilizado especialmente por políticos ou por candidatos a cargos políticos e que geram dividendos do poder. Estimulam, inclusive, empreendimentos securitários, criam dificuldades para o relacionamento da sociedade e aplaudem o sensacionalismo da imprensa e dos demais meios de comunicação” (em Os criminalistas, publicação da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas, ed. RT, 1994, p. 66).
“Ele, o advogado criminal, não deve ser considerado como um cúmplice ideologicamente daquela ação danosa. É evidente que o advogado que defende o autor de um crime, não este com este seu comportamento, independente e altivo, concordando com a prática da infração penal. E nós temos que desmitificar essa idéia primária e também autoritária, de que o advogado se confunde com o seu defendido” (…) “Nenhum contra-senso, portanto, entre o advogado que defende o autor de um crime e o advogado que prega um regime democrático de direito, de direito penal e de processo penal. Porque, antes de mais nada, nós somos colaboradores da ordem pública, responsáveis também pela paz social”. (Os criminalistas, cit., p. 60 e 61).
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Passados mais de dez anos, multiplicaram-se os preconceitos contra a figura do advogado e as restrições ao exercício de seu munus público. Agora, porém, com uma circunstância agravante. É o próprio Poder Judiciário que, por uma parcela de seus representantes e não raramente, está homologando quando não praticando algumas das violações contra a liberdade do exercício profissional e aos direitos inalienáveis de pessoas suspeitas ou acusadas de infrações.
Nos dias correntes, certas práticas abusivas estão sacrificando a declaração constitucional de que o advogado é indispensável à administração da Justiça. Existem muitas dúvidas e certezas que podem ser assim resumidas:
Os princípios do contraditório e da ampla defesa têm efetividade? A exigência do devido processo legal tem sido atendida, com regularidade, pelo Judiciário? A CPI pode intimar alguém para prestar esclarecimentos como testemunha e, no curso da inquirição, converter o ato em interrogatório, transformando o depoente em indiciado? O advogado pode formular perguntas às testemunhas ? O cidadão pode ser coagido a depor contra si? A decisão liminar, do ministro César Peluso, garantindo o direito à imagem de um convocado para depor na CPI do Senado Federal, contra a exploração midiática, foi bem deferida? E o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, poderia cassá-la? Porque não foi concedido aquele Mandado de Segurança, impetrado pelo colega para ter acesso ao inquérito policial aberto contra o seu cliente e no qual foi decretado o sigilo, se o Estatuto da OAB – que é lei federal – garante a vista dos autos ao procurador judicial em qualquer hipótese? O advogado é tratado por alguns juízes preconceituosamente em relação ao agente do Ministério Público? O inquérito civil precisa ter prazo de encerramento fixado ou essa garantia fica ao arbítrio de seu encarregado? A presunção de inocência é um direito e uma garantia fundamental ou um simples mito destruído pelo sensacionalismo das investigações, mesmo quando incipientes?
Os vasos comunicantes entre alguns agentes do Ministério Público e setores da mídia sensacionalista na divulgação açodada de fatos que estão sendo ainda apurados atende, realmente, o interesse social ou é um fato revelador de desvio ético e da violação do princípio clássico da presunção de inocência? E a chamada delação premiada que está recebendo apoio e sendo institucionalizada por alguns magistrados federais, é socialmente benéfica para a ampliação da responsabilidade criminal ou, na verdade, é um estímulo para o erro judiciário e uma violação aberta aos princípios do contraditório e da ampla defesa por parte dos delatados, além da ofensa ao princípio da justa retribuição penal com a oferta de pena menor ao delator?
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No encontro que hoje se inaugura, com a presença e o testemunho de uma imensa legião de colegas, serão demonstradas e discutidas algumas violações. A restrição ou o impedimento de acesso aos autos; a disparidade de armas entre o Ministério Público e a defesa; o relevo institucional e social e os limites para o funcionamento do inquérito civil; a pendência dos julgamentos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade; a violação dos arquivos, comunicações e dados de escritórios de advocacia e a missão institucional da Ordem dos Advogados do Brasil, são os temas do evento. Seus expositores são talentosos, dinâmicos, corretos e intimoratos colegas que fazem da advocacia o sacerdócio cotidiano. Miguel Reale Júnior, Alberto Zacharias Toron, Fernando Augusto Fernandes, Luiz Roberto Barrozo, Luiz Guilherme Vieira, José Roberto Batochio, Luiz Flávio Borges D’Urso e Técio Lins e Silva, deixaram as suas cidades e as suas agendas para prestigiar este evento e torná-lo inesquecível na história de nossas lutas pelos predicamentos da advocacia.
O presente Encontro não tem caráter acadêmico. Ele não se caracteriza pela remissão aos textos constitucionais e legais dos direitos profissionais. Esse aspecto é por demais conhecido pelos trabalhadores forenses. O Encontro é um mural de denúncias e debates acerca da violação dos direitos que resguardam não somente os advogados como também os cidadãos de um modo geral. E vai muito além e acima dos recursos individualmente manifestados pelas partes junto aos Tribunais. O que se busca é a efetiva proteção institucional. É, em palavras simples, garantir as garantias. O advogado não pode ser vassalo de jurisprudência leniente, ilegal ou abusiva. Justamente por esse formato de crítica e denúncia o evento irá contar com depoimentos de colegas que são testemunhas diretas ou vítimas das violações. Alcides Bitencourt Pereira, Alessandro Silvério, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Roberto Bzezinski Neto, Rodrigo Sanchez Rios e Ronaldo Botelho, estão prestando relevante contribuição para que as denúncias sejam conhecidas e que sobre elas haja as meditações necessárias em busca de soluções compatíveis com o Estado Democrático de Direito.
Também teremos uma Tribuna Livre para receber as queixas e reivindicações de nossa classe quanto ao tema das violações das prerrogativas. Serão seus relatores os colegas João Casilo, Joaquim Roberto Munhoz de Mello, Joe Tennyson Velo, Mário de Oliveira Filho, Paulo Ramalho, Paulo Sérgio Leite Fernandes, Renato Cardoso de Almeida Andrade e Rolf Koerner Junior.
Uma síntese das denúncias e sugestões dos participantes da Tribuna Livre será elaborada pelos criminalistas Mário de Oliveira Filho, Paulo Ramalho e Paulo Sérgio Leite Fernandes.
Ao agradecer o apoio da Escola Superior da Advocacia do Paraná, da Associação Brasileira de Criminalistas e da Associação Paranaense de Advogados Criminalistas, quero destacar esse sentimento de gratidão em favor do presidente Manoel Antônio de Oliveira Franco que, desde o primeiro momento, se entusiasmou com este projeto e, pessoalmente, deu-lhe vida e dinamismo. Agradeço, também ao coordenador executivo, doutor Elias Mattar Assad, pelo empenho. Nenhum evento pode ser bem sucedido se não tiver alguém para “carregar o piano”, como se diz na expressão coloquial indicando os esforços até mesmo físicos para o bom sucesso de um empreendimento. E o colega doutor Elias tem sido incansável para bem cumprir as suas atribuições.
Meus caríssimos colegas e amigos:
Pretendemos que as discussões e as proposições resultantes deste encontro possam repercutir nas secionais e subseções de nossa Ordem dos Advogados do Brasil e obter do órgão máximo de representação institucional e profissional o apoio necessário para reverter o quadro de preconceito que ainda é uma sombra na imagem do advogado apesar das luzes irradiadas pelos valores positivos de sua atividade.
Temos a convicção de que poderemos alcançar esse apoio e que ele será, nacionalmente, liderado pelo presidente Roberto Antonio Busato, cuja sensibilidade e coragem cívicas o tem destacado em seus primeiros tempos de uma gestão que, certamente, será muito fecunda para a classe profissional e os interesses do povo e da nação.
Sejam bem-vindos.
René Ariel Dotti
é advogado e professor universitário. Ex-Conselheiro da OAB-PR.