De acordo com Gustavo Zagrebelsky(1), a interpretação é o processo intelectivo através do qual, partindo das fórmulas lingüísticas cujos conteúdos detêm diversos atos normativos, alcança-se a determinação o conteúdo normativo, vetorialmente, dos significantes (os enunciados) aos significados. O ato normativo, assim, como ponto de expressão final de um poder normativo, concretiza-se nas disposições (ou enunciados). As disposições certamente possuem um significado do ponto de vista que lhe imprime internamente o próprio procedimento normativo, isto é, devem exprimir um significado de acordo com os objetivos aos quais as disposições se endereçam. A interpretação é, portanto, uma atividade que vai transformar disposições legais em normas jurídicas.
O ordenamento, no seu valor histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, de normas, enquanto revelação dos conteúdos das normas e também das normas de interpretação, vale dizer, dos conteúdos dos significados e dos conteúdos dos significantes. Este conjunto de disposições é só ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades interpretativas, isto é, de normas potenciais – e potencializadoras. Contudo, não se pode olvidar que a interpretação jurídica é uma atividade eminentemente prática, vinculando-se, pois, aos casos práticos a serem regulados, haja vista que a interpretação científica da ciência do direito mais do que um puro abstracionismo tem sempre diante de si a vida nas suas manifestações concretas. As regras de interpretação do direito são regras instrumentais, pois não são valores em si ou de per si, mas são como se fossem regras relativas a outras regras. Esta instrumentalidade não consiste na sua finalidade de ser um "verdadeiro" significado da disposição a ser interpretada. Não existe uma disposição objetivamente verdadeira, pela simples razão de que no campo do direito não existe um critério de verificação ou falsificação definitivo. O direito e as interpretações são diversamente ciências puramente convencionais que não possuem realidades objetivas, inclusive, que, através das quais possam ser confrontadas.
A interpretação exata é aquela que mais corresponde às exigências sociais do momento e que exprime uma exigência apreciável, sendo, pois, o direito, uma manifestação da sociedade insatisfeita para dar respostas satisfativas – e não satisfatórias – aos seus problemas. O "exato" aqui é o "oportuno" sem se desconsiderar que a oportunidade é um dos critérios que orientam e não podem deixar de orientar o intérprete. Contudo, não se pode esquecer que oportunidade é um conceito eminentemente subjetivo, enfim, é a negação da exatidão, enquanto conceito que se pretende para atendimento de um mundo de realidade diversa. No âmbito puramente convencional – isto é, que possui certas premissas de método convencionalmente aceitável – pode-se falar de interpretação verdadeira ou falsa, de acordo com o uso que se faça de suas regras técnicas e instrumentais: verdade, ou, melhor, correta é a interpretação que faz bom uso das regras sobre interpretações; falsa ou, melhor, incorreta, é aquela que não faz um bom uso.
Um tal entendimento conduz ao pensamento da própria relatividade de toda e qualquer interpretação, haja vista que mudando as regras técnicas e instrumentais então convencionadas, muda-se também o resultado da interpretação. Desta forma, surge a necessidade de preordenar tais normas, com o intuito de que não sejam remetidas à subjetividade exclusiva do intérprete. Do contrário, o ordenamento jurídico não terá a possibilidade de valer como tal – isto é, como ordenamento -, senão ser tão-somente a resultante de ordenamentos interpretativos subjetivos, caso a caso, insuscetível de ser considerado um sistema. As regras sobre interpretação são, portanto, voltadas ao estabelecimento de parâmetros do raciocínio jurídico – racionalidade e razoabilidade jurídica -, subtraindo-lhe da subjetividade de todos os intérpretes – o que distingue a interpretação jurídica da interpretação em qualquer outro setor da atividade humana, eminentemente livre e criativa. Gustavo Zagrebelsky entende que as regras sobre interpretação do direito são como uma reserva de recursos argumentativos nas mãos dos intérpretes. Assim, segundo o autor, quanto maior for a pressão exercida pelos fatos a serem regulados, por certo, tanto mais a tais recursos se lançará mão. O mundo da jurisprudência tem sido perpassado pela tensão, num amplo sentido político, a qual tem importado na formação de jurisprudências alternativas baseadas na assunção de critérios interpretativos diferenciados. Até porque a interpretação do direito não se subtrai às regras que transitam internamente na instituição lingüística em que opera, motivo pelo qual o direito formal se exprime na linguagem não podendo, pois, prescindir das regras de linguagem.
Contudo, a linguagem jurídica é uma linguagem especial. É uma figura especialíssima, pois cria uma barreira à sua compreensão, superável apenas pelos educados juridicamente para tanto. Com efeito, a interpretação do direito é ligada à posição institucional que assume o intérprete acerca das fontes do direito. Pois, o sistema de produção normativa se baseia na concentração da relação de poder do sujeito e segundo o processo autorizador, devendo-se deduzir a posição passiva do intérprete em relação ao sujeito dotado de poder normativo. O intérprete não é o legislador, mas é subordinado à vontade manifestada pelo legislador – segundo Zagrebelsky. O intérprete é vinculado ao significado fático evidente das palavras, contudo, advém disto o seguinte problema: determinar o significado das palavras. O intérprete é sujeitado à vontade-intenção do legislador e daí a questão: determinar tal vontade-intenção. A regulamentação da atividade humana operada pelo direito não é um fim em si, mas se justifica por perseguir determinados fins sociais. A consideração da razão das regras jurídicas é essencial para entender o conteúdo que porta. O direito é ligado a um fim, é um instrumento para a organização social. Porém, as regras que o constitui demonstram que não existe ou não se arrisca a escolher uma sua razão, isto é, um seu elemento lógico político, e, por isso, agrega-se razões razoáveis, as quais são invalidas, enquanto puramente arbitrárias. Em face disto, o controle que a corte constitucional desenvolve sobre razoabilidade das leis, por certo, remonta à análise das manifestações que estabelecem o sentido normativo das regras (disposições ou enunciados), particularmente, para verificar razões razoáveis – puramente arbitrárias – em que se fundam. Contudo, impede observar que todas as tentativas de bloquear as transformações do direito por via da interpretação foram e são destinadas ao insucesso.
E a razão disto é muito clara: a interpretação evolutiva mais do que admissível ou inadmissível, simplesmente, não pode ser eliminada conforme a característica da ciência do direito é ser ciência; e por excelência prática. Para Gustavo Zagrebelsky, entende-se por interpretação evolutiva a operação que se volta a reconstruir o direito dinamicamente, consoante as exigências que a realidade social manifesta. Porém, é preciso que se diferencie interpretação evolutiva e disposições que contêm conceitos indeterminados – como, por exemplo, "boa-fé" ou "função social" -, haja vista que a interpretação evolutiva significa que a disposição jurídica, sofrendo a pressão de fatores externos e válidos acerca dos fins, muda de significado, exprimindo, assim, normas que se não encontravam nas previsões iniciais. Já no caso dos conceitos jurídicos indeterminados – ou cláusulas gerais – é o legislador que por conta própria remete a outros intérpretes que aplicam o direito a determinação de "concessão" para que estabeleçam concretamente o que significa cada um daqueles conceitos.
O legislador, desta forma, delega substancialmente a sua competência a outros sujeitos, os juízes em particular, os quais são colocados concretamente no interior de uma problematização acerca da idoneidade de uma tal competência. A polêmica que se estabelece, assim, gira em torno da possibilidade efetiva da interpretação evolutiva dar conta das definições jurídicas das múltiplas expressões da realidade social, motivo, inclusive, pelo qual, freqüentemente, recorre-se ao estabelecimento de cláusulas genéricas, particularmente, pelo legislador.
Considerações tópicas
Do que se vê, em Gustavo Zagrebelsky é a existência de normas a respeito de interpretação que são convencionalmente estabelecidas enquanto método jurídico vinculativo – metodologia técnico-jurídica – tanto para o legislador (enquanto agente de um poder constituído para a implementação de determinadas competências), quanto para o julgador (enquanto agente de um poder constituído para resolução de limitadas questões), para aplicação das disposições legais reguladoras dos fatos que se produzem no interior de uma dada sociedade.
Entretanto, uma coisa é certa: o legislador não dá conta, através de suas competências, das atribuições que lhe foram conferidas. Por isso, transfere implícita e ilegitimamente competências suas e que são particularmente próprias à função legislativa, ao julgador, o qual, por sua vez, também não se encontra habilitado para dar conta de tal desiderato, resultando, pois, assim, no "estrangulamento" do sistema estatal de resolução das questões sociais que lhe são postas.
Em face disto, a proposta interpretação evolutiva de Gustavo Zagrebelsky, enquanto metodologia técnico-jurídica para superação da ineficácia do sistema estatal funcionalista – assunção de competências resolutivas das insatisfeitas exigências sociais – apenas reconhece ao julgador – assim como a qualquer outro intérprete – tão-somente a possibilidade do "bom uso" das regras de interpretação, para dar conta das "novidades fático-sociais". De outro lado, limita a atividade de interpretação quanto à possibilidade de criação e inovação, conspurcando particularmente a autonomia necessária do julgador – enquanto centro de competências transferidas indevidamente pelo legislador -, precisamente ao lhe exigir observância coerente àquela metodologia técnico-jurídica construída para "revelação" do conteúdo possível de uma determinada disposição legal, a qual passa, assim, a ser aceita/acreditada como norma jurídica válida.
Desta forma, não só se respeita este mítico convencionalismo estruturante das "regras de interpretação" – seja lá qual for este "convencionalismo" ou mesmo aquilo que for nominado como tal -, mas, também, com isto, renova-se a cada aplicação da lei, então, transformada em norma jurídica, o reconhecimento reverencial do julgador/intérprete aos limites metodológicos impostos como maneira de agir legal e validamente.
Isto é, o conteúdo normativo que advier do processo de aplicação das regras de interpretação apenas será considerado legal (válido) e legítimo (efetividade) quando for resultante da adequada utilização da metodologia técnico-jurídica convencionalmente posta para interpretação (regra de reconhecimento/revelação) das disposições legais (lei, enquanto fato gráfico), chanceladas pelo legislador, cuja finalidade almejada é a regulamentação das novas atividades sociais e dos novos comportamentos humanos.
A questão é que as premissas de tais metodologias interpretativas estabelecidas para dar conta destas novas pautas individuais e sociais a partir do âmbito técnico-jurídico, na verdade são indemonstráveis, vale dizer, constituem-se em puros arbítrios daqueles que se propõem a fixar convencionalmente entre "eles" – os "legisladores" – as normas sobre a "atividade de interpretar". Pois, como se percebe, as regras que estabelecem as "regras de interpretação" fogem às limitações do marco teórico-jurídico para, assim, permanecerem fora da dimensão do jurídico, enquanto opções decorrentes dos planos culturais os mais diversos possíveis.
Isto é, constituem-se em puras opções políticas que produzirão, ao seu tempo, efeitos jurídicos. Bem por isso, as premissas últimas de toda e qualquer interpretação, em que pese a possibilidade de se remontar à sua origem político-ideológica, no fundo, para além da dimensão técnico-jurídica – racionalidade e razoabilidade jurídica -, jamais restarão metodologicamente demonstráveis. Enfim, a única coisa que se pode confrontar – em verificação – é a coerência entre as idéias fundantes estabelecidas como opções elementares e estruturantes – por exemplo, na Constituição República brasileira de 1988, como direitos, garantias e princípios fundamentais – e as ações adotadas na espacialidade pública sejam elas jurídicas ou não – políticas, sociais, etc.
(1) ZAGREBELSKI, Gustavo. Manuale di diritto costituzionale: il sistema delle fonti del diritto. Vol. I, Torino: UTET, 2000.
Mário Luiz Ramidoff
é doutorando em Direito, PPGD-UFPR; marioramidoff@ig.com.br.