Do efeito liberatório dos precatórios
Buscando encontrar uma solução eficiente e não traumática como a intervenção, para a questão do “calote” estatal, ou, em outras palavras, buscando uma providência efetiva, para que as decisões judiciais, quando formalizadas contra o Estado não continuem a ser meramente líricas, ou mero protocolo de intenções, o poder constituinte, através da Emenda Constitucional n.º 30, de 13 de setembro de 2000, acrescentou, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o art. 78 que, em seu caput instituiu uma moratória para que os precatórios ali referidos pudessem ser pagos em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, e, na seqüência, em seu § 2.º conferiu poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora, às referidas prestações, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem.
Neste dispositivo o legislador constituinte deu formulação suficiente para atribuir o efeito liberatório aos precatórios, dispensando qualquer intervenção, nesse sentido, do legislador infraconstitucional, ou seja, trata-se de norma de eficácia plena, auto-aplicável.
Atribuir poder liberatório aos precatórios equivale a atribuir-lhes uma natureza de moeda de curso legal para pagamento de tributos e recusar-lhe o recebimento, pelo seu valor, pode caracterizar a contravenção de recusa de moeda de curso legal, prevista no art. 43 da Lei das Contravenções Penais.
O poder liberatório atribuído aos precatórios, transformando-os em moeda de curso legal, dispensa-os, por óbvio, da observância da ordem cronológica prevista na cabeça do art. 100 da Constituição Federal, até porque o ato de disposições constitucionais transitórias tem natureza de norma constitucional e poderá, portanto, trazer exceções às regras colocadas no corpo da Constituição.
Aliás, o Supremo Tribunal Federal já se posicionou a respeito, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 2.851-1 de Rondônia, da relatoria do Ministro Carlos Velloso, onde o requerente – Governador do Estado de Rondônia – alegava a inconstitucionalidade da Lei 1.142, de 2002, daquele Estado, que autoriza a compensação de crédito tributário decorrente de precatório judicial a que se refere o art. 78, ADCT/CF, por afronta ao art. 100 da CF:
No corpo do voto consta:
O Supremo Tribunal Federal tem, na verdade, decidido que, na forma do art. 100 da Constituição Federal, os pagamentos devidos pela Fazenda Pública, em virtude de sentença, devem ser feitos na ordem cronológica de apresentação dos respectivos precatórios: …. A matéria, entretanto, sofreu alteração com a EC 30, de 2000, que acrescentou ao ADCT o art. 78, §§ 1.º, 2.º, 3.º e 4.º.
O art. 78, ADCT, introduzido pela EC 30/2000, inova no tema dos precatórios. E a ADI foi julgada improcedente, o que significa dizer que a lei rondoniense que não exigiu, em relação aos precatórios com poder liberatório, a observância da ordem cronológica ditada no art. 100 da CF, foi considerada constitucional pelo Excelso Pretório.
O efeito liberatório dos precatórios de natureza alimentar
Aparentemente, nos termos do § 2.º do art. 78 do ADCT o poder liberatório é atribuído apenas as prestações anuais dos precatórios comuns, não liquidadas, ou seja, não alcança os de natureza alimentícia.
O texto é o seguinte: “As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.”
A questão é tão relevante que foi reconhecida a repercussão geral do tema, no Recurso Extraordinário RG 566349/MG, pela Ministra Cármen Lúcia.
O legislador foi explícito quando atribuiu poder liberatório às prestações anuais dos precatórios comuns, não liquidadas, mas silenciou quanto a sua extensão aos precatórios de natureza alimentícia.
Como interpretar essa omissão?
A omissão do legislador pode ser interpretada de duas maneiras: ou é silêncio eloqüente e aí proíbe, ou é lacuna e aí, nos termos do art. 4º da Lei de Introdução do Código Civil permite que o juiz decida de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
No caso, a omissão só poderia ser interpretada como silêncio eloquente se a atribuição do poder liberatório aos precatórios de natureza alimentícia fosse incompatível com o sistema constitucional que os protege.
Negar-se o poder liberatório aos precatórios de natureza alimentícia faria ruir a clássica e sempre respeitada lição de Carlos Maximiliano de que o Direito deve ser interpretado inteligentemente: não de modo que a ordem legal envolva um absurdo(1).
Absurdo seria excluir de proteção constitucional – eficácia decorrente do poder liberatório – aqueles que mais dela necessitam, ou, por outras palavras, absurdo seria negar uma real eficácia a um precatório que tem preferência de pagamento e atribuir-lhe a outro, destituído de qualquer caráter preferencial.
Argumenta-se, para excluir o poder liberatório em relação aos precatórios alimentares, com uma interpretação restritiva, meramente gramatical, porém novamente cabe invocar a lição de Carlos Maximiliano no sentido de que:
Desde que a interpretação pelos processos tradicionais conduz a injustiça flagrante, incoerências do legislador, contradição consigo mesmo, impossibilidades ou absurdos, deve-se presumir que foram usadas expressões impróprias, inadequadas, e buscar um sentido equitativo, lógico e acorde com o sentir geral e o bem presente e futuro da comunidade.
O intérprete não traduz em clara linguagem só o que o autor disse explícita e conscientemente; esforça-se por entender mais e melhor do que aquilo que se acha expresso, o que o autor inconscientemente estabeleceu, ou é de presumir ter querido instituir ou regular, e não haver feito nos devidos termos, por inadvertências, lapso, excessivo amor à concisão, impropriedade de vocábulos, conhecimento imperfeito de um instituto recente, ou por outro motivo semelhante(2).
Discorrendo sobre a possibilidade de compensação tributária do precatório alimentar, com o advento da Emenda Constitucional 30/2000, escreve Kiyoshi Harada:
Destoa do bom-senso a interpretação literal, que leva a atribuir ao precatório privilegiado menos direito do que ao precatório não privilegiado, submetido ao regime conhecido como “calote do precatório”(3).
No mesmo artigo, o autor, considera que a inversão que vem ocorrendo na prática – atribuir-se poder liberatório aos precatórios comuns e não aos de natureza alimentar – “é inconstitucional, imoral e intolerável”(4).
Sacha Calmon chama de histórica a decisão monocrática do Ministro Eros Grau no RE/550400, que atribui poder liberatório aos precatórios de natureza alimentar, ao afirmar que “a Constituição do Brasil não impôs limitações aos institutos da cessão e da compensação e o poder liberatório de precatórios para pagamento de tributo”(5).
A Primeira Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, na apelação cível n. 2006.01.1.058772-5, na relatoria do Desembargador Nívio Geraldo Gonçalves, decidiu que a natureza alimentar do precatório não representa óbice à compensação tributária.
Portanto, conclui-se que o poder liberatório a que se refere o citado § 2.º do art. 78, estende-se aos precatórios de natureza alimentar quer por analogia ou equidade, ou ainda, pelo princípio constitucional maior que é o da igualdade.
Conclusões:
a) com a Emenda Constitucional n. 30, o legislador constituinte, através do art. 78 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, inovou, atribuindo aos precatórios não quitados, apesar da moratória ali instituída, o poder liberatório para pagamento de tributos;
b) a atribuição de poder liberatório aos precatórios, para pagamento de tributos, lhes confere natureza de moeda de curso legal, para tal finalidade; e,
c) deixar de atribuir poder liberatório aos precatórios de natureza alimentícia é interpretar o Direito de modo que a ordem legal envolva um absurdo. Se a interpretação gramatical não é suficiente para tanto, deve-se recorrer à analogia e à equidade.
Notas:
(1) Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 9. Ed./2.ª tiragem. Forense, 1981, p. 166.
(2) Obra citada, p. 166/167.
(3) http://jus2.uol.com.br/doutrina/ imprimir.asp?id=11471 em 25/2/2009.
(4) http://jus2.uol.com.br/doutrina/ imprimir.asp?id=11471 em 26/2/2009.
(5) http://www.sachacalmon.com.br/ admin/arq_opiniao/177db6acfe388526a4c7bff88e1feb15.pdf em 26/2/2009.
Jorge de Oliveira Vargas é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, mestre e doutor em direito público pela Universidade Federal do Paraná, professor de Direito Constitucional na Escola da Magistratura do Paraná, núcleo de Curitiba e de Processo Civil nas faculdades de Direito da Universidade Tuiuti do Paraná e Unibrasil. Laércio Cruz Uliana Junior é acadêmico do curso de Direito das Faculdades Integradas do Brasil Unibrasil e estagiário na AGU PU Paraná.