O procedimento de aplicação da pena privativa de liberdade é matéria bastante discutida na doutrina e na jurisprudência. O tema é influenciado diretamente pelas diretrizes constitucionais, tendo sido buscado ao longo dos anos pelo legislador e pelos operadores do direito a maneira mais justa de realizar a dosimetria da pena.
No Código Criminal do Império conferia-se à sanção penal aplicação matemática, feita segundo três graus distintos: máximo, médio e mínimo. O Código Penal de 1890 disciplinou a matéria no mesmo sentido, dividindo as sanções penais em grau máximo, submáximo, médio, submédio e mínimo
Entretanto, o Código Penal de 1940, visando a melhor individualização da pena conferiu certa margem de discricionariedade ao juiz, que, observando os limites estabelecidos pela lei, fixava a quantidade de pena apropriada.
Nesta época, parte da doutrina, na esteira do mestre Roberto Lyra, mediante interpretação dos arts. 42 e 50 do Código Penal, entendia que o sistema eleito para aplicação da pena era o bifásico, que consistia no cálculo da pena em duas etapas, sendo que, na primeira, fixava-se a pena-base com observância das circunstâncias judiciais das agravantes e atenuantes, concomitantemente; e, na segunda etapa seriam apreciadas as causas de aumento e diminuição de pena, gerais e especiais.
Entretanto, Nelson Hungria defendia que a pena deveria ser fixada em três etapas, analisando, na primeira, as circunstâncias judiciais; na segunda, as circunstâncias legais (também denominadas atenuantes e agravantes); e, por fim, as causas de aumento e diminuição de pena.
Com a Reforma da Parte Geral do Código Penal (1984), prevaleceu a doutrina de Hungria e foi estabelecido expressamente no art. 68 do mesmo estatuto a adoção do Sistema Trifásico de Aplicação da Pena, que, consoante Exposição de Motivos do Código Penal, permite o completo conhecimento da operação realizada pelo juiz e a exata determinação dos elementos incorporados à dosimetria.
Conforme já mencionado, o Sistema Trifásico consiste na aplicação da pena privativa de liberdade em três etapas, devendo o magistrado analisar na primeira fase as circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal; na segunda fase as circunstâncias legais elencadas nos arts. 61, 62, 65 e 66 do mesmo estatuto e, por fim, as causas especiais de aumento e diminuição de pena gerais e especiais.
Questão polêmica é a possibilidade do juiz, com base numa circunstância atenuante, rebaixar a pena aquém do mínimo legal.
É cediço que uma causa especial de diminuição tem o condão de diminuir a pena abaixo do mínimo, visto que o legislador determinou, nestas circunstâncias, o quantum a ser diminuído, estabelecendo quantidades penais fixas ou variáveis, normalmente em forma de fração, o que autoriza a diminuição aquém da margem punitiva.
Todavia, com relação às circunstâncias atenuantes o legislador foi omisso, abrindo margem à discricionariedade judicial no que concerne à quantidade de pena a ser diminuída.
Reiteradas decisões (TAPR, Ap. 0054175-3, DJU 20.11.92; TAPR, Revisão Criminal n.º 0074786, DJU 04.08.1999) e inclusive a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça vedam a possibilidade de, em razão de uma circunstância atenuante, extrapolar-se o limite legal.
A razão desta interpretação é proveniente da legislação anterior, onde era expressamente vedada tal operação. Ademais, sustentam que permitir aludida redução violaria o princípio constitucional da legalidade, pois como não há limite expresso para a quantidade de diminuição, haveria que se limitar a discricionariedade judicial aos patamares previstos pelo legislador.
Entretanto, o Código Penal vigente silencia com relação a aplicação da pena aquém do mínimo na segunda fase da dosimetria. Neste diapasão, defende-se a redução da pena abaixo do patamar mínimo com fundamento na interpretação do contido no art. 65 do Código Penal. O dispositivo em questão enuncia o rol exemplificativo das circunstâncias legais que atenuam a pena, estabelecendo que estas circunstâncias “sempre” atenuam a pena.
Ou seja, permanecendo a pena-base no mínimo legal e constatada a existência de uma circunstância atenuante, esta necessariamente deve ser considerada para reduzir a pena.
Trata-se de interpretação não apenas literal do dispositivo, mas também sistemática, pois a Constituição Federal de 1988 estabeleceu um sistema eminentemente garantista, no qual os direitos e garantias fundamentais individuais são elevados à condição de cláusulas pétreas. Entre estas, encontra-se a garantia da legalidade (art. 5.º, XXXIX da CF) que impõe a descrição prévia da pena máxima e mínima cominada a cada tipo penal. A descrição destes limites serve como garantia para os cidadãos, assegurando que, caso sejam processados, não ficarão expostos à discricionariedade judicial no que tange ao montante de pena a ser aplicado. Desta forma, considerando que esta garantia é dos cidadãos, levando também em conta que os direitos fundamentais convivem harmonicamente no ordenamento jurídico, a interpretação que permite a fixação da pena aquém do mínimo não fere a legalidade e homenageia outra garantia constitucional, qual seja a da individualização das sanções penais (art. 5.º, LVI da CF).
Neste sentido, individualizar a pena significa aplicá-la levando em consideração o indivíduo que praticou a infração penal. Através do processo de individualização da sanção penal é que o magistrado encontra a pena necessária e suficiente para prevenir e reprovar o crime, bem como para ressocializar o condenado.
Exemplifiquemos. Digamos que em determinado caso concreto a pena-base tenha permanecido no mínimo legal devido às circunstâncias judiciais serem favoráveis ao acusado, mas o agente seja réu confesso, menor de 21 anos, tenha cometido o crime por motivo de relevante valor social e, ainda, sob influência de multidão em tumulto (circunstâncias previstas no art. 65 do Código Penal), deveria o juiz desconsiderar estas circunstâncias legais que atenuam a pena tão somente pelo fato de que a pena já está no mínimo legal? Com esta conduta o magistrado encontraria a pena que melhor retribuiria a pratica do crime?
Constata-se que não, pois não há como desconsiderar circunstâncias que beneficiam o agente e diminuem a lesividade de sua conduta.
A propósito, este já foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento da Resp. n.º 68.120, bem como é a tese de Agapito Machado (RT 647:388, defendido por Luiz Regis Prado (Curso de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. 2º ed.; Revista dos Tribunais, p. 442).
Portanto, diante da ordem constitucional vigente, da interpretação sistemática e também literal do art. 65 do Código Penal, tem-se como absolutamente possível a redução da pena aquém do mínimo legal em razão de uma circunstância atenuante, podendo o magistrado utilizar, analogicamente, como parâmetro de redução, o quantum mínimo previsto para as causas especiais de diminuição de pena, qual seja um sexto da pena, evitando, assim, excessos e injustiças.
Heloísa da Silva Krol
é monitora de Direito Penal III da Faculdade de Direito Curitiba.