A posse de arma de fogo de uso permitido, na própria casa ou no próprio local de trabalho, foi tratada pela Lei 10.826,(I) de 22 de dezembro de 2003, nos arts. 5.º e 12, nos seguintes termos:
Art. 5.º O Certificado de Registro de Arma de Fogo, com validade em todo o território nacional, autoriza o seu proprietário a manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa. (Com a redação dada pela Lei 10.884/04, que abaixo será objeto de comentário).
Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa.
Já, a posse de arma de fogo de uso restrito ou proibido foi tratada pela mesma Lei 10.826/03, juntamente com o porte, no art. 16, da seguinte forma:
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
A referida Lei 10.826/03 entrou em vigor no dia de sua publicação, 23.12.03, por força de seu art. 37.(II)
Portanto, salvo por uma interpretação sistemática, a conclusão é de que ter arma em casa, sem registro, seja a arma permitida, restrita ou proibida, é conduta típica desde a publicação da aludida Lei.
A conclusão sistemática, porém, indica outra direção, mostra que a acima explicitada não é correta, e isto por duas razões.
Primeiro é indispensável lembrar que ambos os artigos são normas penais em branco, visto carecerem de norma complementar definidora do que sejam arma de fogo, acessório ou munição de uso permitido, restrito ou proibido.
Em segundo é necessário observar que a descrição da conduta proibida apresenta elementos normativos – em desacordo com determinação legal ou regulamentar – sendo certo afirmar, assim, que só haverá adequação típica se a conduta for praticada afrontando determinação regulamentar.
Ocorre que não houve a edição de regulamento ao tempo da publicação da Lei. O Decreto regulamentador, Decreto n.º 5.123,(III) é de 1.º de julho de 2004 ou seja, veio ao mundo pouco mais de seis meses após a publicação da Lei que regulamentou.
Significa que é possível concluir que as condutas descritas nos mencionados arts. 12 e 16, no que pertine à posse, sem olhar os arts. 30, 31 e 32 da mesma Lei 10.826/03, que adiante serão objeto de apreciação, só passaram a ser típicas após a publicação do Decreto regulamentador, ocorrida em 02.07.04.
Tem-se visto, porém, opiniões de que ditos artigos de fato entraram em vigor no dia da publicação da Lei, valendo dizer que a conduta passou a ser típica desde 23.12.03, em vista de que o Decreto n.º 2.222/97,(IV) que regulamentou a anterior Lei sobre armas de fogo, Lei n.º 9.437/97,(V) foi recepcionado pela Lei nova e que o Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R-105), aprovado pelo Decreto n.º 3.665/2000,(VI) definia arma de fogo de uso permitido, restrito ou proibido.
Ocorre, porém, que não é possível entender que o Decreto regulamentador da Lei anterior foi recepcionado, em vista de vários motivos.
Primeiro, foi vontade expressa do Poder Legislativo que a Lei nova fosse regulamentada no futuro, pois que fez constar no art. 23, da Lei 10.826/03, que a classificação legal, técnica e geral, bem como a definição das armas de fogo e demais produtos controlados, de usos proibidos, restritos ou permitidos, será disciplinada em ato do Chefe do Poder Executivo Federal, mediante proposta do Co mando do Exército. Ou seja, pela expressa ordem de que será disciplinada, não entendeu conveniente o uso de regulamentação passada, mas, sim, futura. Entendeu que a Lei nova carecia de nova regulamentação, sem dúvida por sua importância.
Em outras palavras o Poder Legislativo explicitou que exclusivamente um decreto federal futuro, a ser editado pois, é que viria definir o que seriam armas de fogo e demais produtos controlados, de usos proibidos, restritos ou permitidos.
Afinal resta evidente que se fosse para vigorar a regulamentação antiga não haveria qualquer necessidade da existência do citado art. 23, dado que a expressão em desacordo com determinação legal ou regulamentar, contida nos arts. 12, 14, 16 e 17, da Lei 10.826/03, admitiria a recepção do regulamento anterior. Como, porém, o art. 23 foi incisivo, taxativo com a expressão será, jogou para o futuro a regulamentação, ensejando proibição de se usar, e haver fundamento, no Decreto anterior. E é sabido que a lei não deve conter dispositivos inócuos.
Ademais, o Decreto n.º 2.222/97 surgiu em cumprimento do ordenado no art. 19(VII) da Lei anterior, n.º 9.437/97, tanto que sua ementa reza: Regulamenta a Lei n.º 9.437, de 20 de fevereiro de 1997 [..]. Vale dizer que tendo a Lei nova, n.º 10.826/03, em seu art. 36,(VIII) expressamente revogado a anterior, n.º 9.437/97, automaticamente revogado ficou seu Decreto regulamentador, pois que não é possível valer o regulamento se a lei não mais existe.
Já o Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R-105), aprovado pelo Decreto n.º 3.665/2000, segue a mesma sorte do Decreto 2.222/97, pois que existia com base nos arts. 42 a 44 do mesmo.
Damásio de Jesus(IX) observou em artigo sobre o assunto:
Chega-se à conclusão de que, nas definições as quais requerem complemento, qual seja a regulamentação, como ela ainda não existe, são atípicos todos os fatos cometidos a partir da data da entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento (23.12.2003). É o que ocorre, por exemplo, nas figuras que mencionam armas de fogo de uso restrito, permitido e proibido (arts. 12, 14 e 16). Como não sabemos quais sejam, isto é, não temos elementos para classificá-las como de uso permitido, proibido ou restrito, não podemos enquadrar os fatos nos modelos legais.
Nunca é demais lembrar que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e que existem três Poderes da União,(X) não sendo legítimo a ninguém invadir competência ou atribuição privativa, mormente a de legislar em matéria penal.
A conclusão, portanto, deste primeiro tópico é que, até a publicação do Decreto n.º 5.123/04, em 02.07.04, possuir arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa, conforme art. 12 da Lei 10.826/03, bem como possuir arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito, conforme art. 16 da mesma Lei, também no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa, não era fato típico.
II Atipicidade em vista dos arts. 30, 31 e 32 da Lei 10.826/03
Estipulam os arts. 30, 31 e 32, da Lei 10.826/03:
Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse, pelos meios em direito admitidos.
Art. 31. Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo, e indenização, nos termos do regulamento desta Lei.
Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las a Polícia Fede ral, mediante recibo, e presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei.
Cumpre inicialmente relembrar que embora conste nos arts. 30 e 32 que o prazo de implementação das medidas nos mesmos previstas seria de cento e oitenta dias após a publicação desta Lei, a Medida Provisória n.º 174, de 18 de março de 2004,(XI) determinou que os prazos dos arts. 29, 30 e 32, tivessem início a partir da publicação do decreto regulamentador da citada Lei n.º 10.826/03. Em seguida veio a Lei 10.884, de 17 de junho de 2004,(XII) estipulando, em seu art. 1.º, que o termo inicial dos prazos dos artigos referidos passa a fluir a partir da publicação do decreto que os regulamentar, não ultrapassando, para ter efeito, a data limite de 23 de junho de 2004, bem como dando nova redação ao art. 5.º e ao § 3.º do art. 6.º, da Lei 10.826/03. Dias depois surgiu o acima referido Decreto n.º 5.123, de 1.º de julho de 2004, regulamentando a Lei. E, finalmente, foi editada a Medida Provisória n.º 229/2004,(XIII) dispondo que os prazos previstos nos arts. 30 e 32 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, ficam prorrogados, tendo por termo final o dia 23 de junho de 2005.
Assim, de que os prazos expressos nos arts. 30 e 32 ainda não findaram não há qualquer dúvida. Significa que qualquer pessoa pode, até o dia 23.06.05, buscar o registro de sua arma, seja a arma de uso permitido ou restrito, neste último caso por força do art. 3.º, parágrafo único, da Lei 10.826/03, e do art. 18 do Decreto n.º 5.123/04. Pode, também, até a mesma data, entregar arma à Polícia Federal e no Paraná também na Polícia Civil ou Militar,(XIV) seja a arma de uso permitido, restrito ou proibido, pois que o art. 32 não faz qualquer ressalva quanto a tipo de arma.
A questão, porém, é saber se é típica a conduta de quem possui arma, de uso permitido, restrito ou proibido, sem registro, em sua própria casa ou em seu local de trabalho, neste caso sendo o titular ou o responsável pelo estabelecimento ou empresa, e isto desde o dia da publicação da Lei 10.826/03, e até o próximo dia 23.06.05.
A resposta só pode ser negativa, em vista de que o tipo incriminador da posse de arma de fogo de uso permitido, art. 12 da Lei 10.826/03, bem como a criminalização da conduta de posse – exclusivamente de posse – de arma de fogo de uso restrito ou proibido, prevista no art. 16 da mesma Lei, de fato ainda não entraram em vigor, dado que os citados arts. 30 e 32, que são tipos permissivos, criaram um direito público subjetivo ao proprietário ou possuidor de arma, facultando-lhe, no prazo assinalado, ou de registrar dita arma ou de entregá-la à Polícia Federal.
Com efeito, se forem confrontados os tipos incriminadores contidos nos arts. 12 e 16, com os tipos permissivos consubstanciados nos arts. 30 e 32, e, ainda, a questão da vigência estipulada no art. 37, todos da Lei 10.826/03, será visto que impossível qualquer conciliação se não trazidos ao bojo da questão os arts. 68 e 69, do Decreto n.º 5.123/04.
De fato confira-se que o art. 12 incrimina a posse de arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido e, o art. 16, a posse de arma de fogo, acessório ou munição de uso proibido ou restrito. Já o art. 37 estipula a entrada em vigor da Lei na data de sua publicação, portanto 23.12.03, significando, em leitura divorciada do conjunto, que possuir arma de fogo, em casa ou local de trabalho, seja a arma de uso permitido, restrito ou proibido, sem o devido registro, seria conduta típica desde aquela data.
Ocorre que, confrontando com o disposto nos citados artigos, existem os tipos permissivos contidos no art. 30, autorizando a solicitação do registro da arma de fogo de uso permitido no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, e no art. 32, concedendo a faculdade, aos possuidores e proprietários de armas de fogo, de entregar ditas armas à Polícia Federal, também no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, e, inclusive, com possibilidade, presumindo-se a boa-fé, de haver pagamento de indenização, ao proprietário ou possuidor, pela entrega da arma.
Sem dúvida que a clareza do texto torna obrigatórias algumas perguntas: as armas de fogo não registradas em relação às quais deve ser solicitado o registro conforme art. 30, são, somente, armas de uso permitido em vista de que deve ser apresentada nota fiscal ou são, também, armas de uso restrito ou proibido dado a possibilidade de comprovação da licitude da origem da posse pelos meios em direito admitidos? Como será presumida a boa-fé? Como será paga a indenização? Em dinheiro, no balcão da Polícia Federal? Quanto será pago por um revólver trinta e oito, de fabricação nacional? E por uma carabina? E por um fuzil? De que rubrica orçamentária sairá o dinheiro, em vista do previsto no art. 167, I e II, da Constituição Federal?(XV)
A resposta teria que vir, como veio, no Decreto regulamentador, n.º 5.123/04, com o disciplinamento da questão do registro no art. 12 e seguintes e com as regras da entrega da arma de fogo, indenização por tal entrega e definição da questão da boa-fé, nos arts. 68 e 69, pois que estes estipularam:
Art. 68. O valor da indenização de que tratam os arts. 31 e 32 da Lei 10.826, de 2003, bem como o procedimento para pagamento, será fixado pelo Ministério da Justiça.
Parágrafo único. Os recursos financeiros necessários para o cumprimento do disposto nos arts. 31 e 32 da Lei 10.826, de 2003, serão custeados por dotação específica constante do orçamento do Departamento da Polícia Federal.
Art. 69. Presumir-se-á a boa-fé dos possuidores e proprietários de armas de fogo que se enquadrem na hipótese do art. 32 da Lei 10.826, de 2003, se não constar do SINARM qualquer registro que aponte a origem ilícita da arma.
Portanto a Polícia Federal, citada no art. 32, só poderia receber alguma arma após o advento do Decreto, dado que até então não sabia como proceder, nem quanto pagar, nem de onde tirar o dinheiro e nem quem era de boa-fé. Só que o Decreto n.º 5.123/04 foi publicado em 02.07.04, vale dizer, já findo o prazo de 180 dias após a publicação desta Lei, previsto no aludido art. 32, posto que a Lei 10.826/03 foi publicada em 23.12.03.
Quer dizer: jamais seria possível a alguém entregar uma arma de fogo se o prazo de entrega fosse o referido no art. 32. Portanto, como a legislação não pode, ao mesmo tempo, proibir e autorizar, o prazo correto teria que ser como foi e está sendo o prazo de cento e oitenta dias após a publicação do Decreto.
Por conseqüência, pela mais absoluta lógica, da mesma forma, a conduta proibida de posse, estabelecida nos referidos arts. 12 e 16, antes do advento do Decreto 5.123/04 era atípica por falta do regulamento desta Lei previsto no citado art. 32. E, após a publicação de dito Decreto, continuou atípica, agora em vista de que em curso o prazo da faculdade de entrega da arma de fogo à Polícia Federal. Será, pois, típica a conduta de posse, findo o citado prazo de cento e oitenta dias, que, em vista das prorrogações, ocorrerá, conforme retro demonstrado, no dia 23.06.05. Entendimento contrário implica em reconhecer que o tipo permissivo do art. 32 jamais teve aplicação concreta, tendo, por conseqüência, todos quantos até hoje levaram suas armas e munição à Polícia Federal ou, no Paraná, à Polícia Civil ou Militar, violado o art. 12 ou 16 da Lei 10.826/03, dependendo da arma e ou munição que entregou.
Para por termo ao tópico, de suma importância consignar, pela pertinência ao tema, Acórdão da Quarta Câmara Criminal do extinto Tribunal de Alçada do Estado do Paraná, da lavra do então Juiz Lauro Augusto Fabrício de Melo: ?Habeas Corpus? Artigo 12 do Estatuto do Desarmamento (Lei n.º 10.826/03) Paciente denunciado antes do Decreto que regulamentou os prazos dos artigos 29, 30 e 32 do referido Diploma Legal Impossibilidade Norma penal em branco Atipicidade […].(XVI)
III – O alcance do art. 32 da Lei 10.826/03
Surgiram duas interpretações, quer parecer, no mínimo preocupantes em relação ao citado art. 32. Uma de que o mesmo não alcança arma de uso restrito ou proibido, não se referindo ao art. 32,(XVII) e outra de que não alcança entrega de acessório ou munição.(XVIII)
A primeira questão, não referir-se à entrega de arma de fogo de uso restrito ou proibido, de convir, não possui qualquer amparo, posto que o artigo não se refere a arma deste ou daquele uso e, sim, a armas de fogo. Na verdade quando o legislador desejou distinguir arma de uso permitido, de uso restrito e de uso proibido, assim o fez, como no parágrafo único do art. 3.º, bem assim nos arts. 4.º, 10, 12, 14, 16, 19, 23 e 27, todos da Lei 10.826/03. Ademais a arma de uso restrito pode ser objeto de compra, conforme autorização contida no art. 27 da citada Lei, bem como de registro, portanto passando a ser de uso permitido, a teor do citado parágrafo único do art. 3.º. Por outro lado, buscou o legislador contemplar todas as situação ao determinar/permitir, no art. 30, o registro de arma de fogo de uso permitido ou restrito, pois que com nota fiscal de compra ou comprovação da origem lícita da posse. No art. 31 tratou da entrega de arma de fogo de uso permitido e restrito, desde que adquiridas regularmente. Portanto, assim, por absoluta lógica, bom senso e interpretação sistemática, uma vez que o art. 31 tratou da entrega de armas de uso permitido, vez que adquiridas regularmente, o art. 32 só pode dizer respeito a armas de fogo não adquiridas regularmente, pouco importando se de uso permitido, restrito ou proibido. Afinal é possível alguém não ter adquirido uma arma de fogo regularmente mas ser possuidor de boa-fé e, além de entrega-la, receber indenização, conforme última parte do telado art. 32. E mais: se o objetivo do Estatuto é desarmar a população, qual a lógica de permitir a entrega de armas de fogo de uso permitido e impedir a de uso restrito ou proibido se, via de regra, estas possuem poder destrutivo maior?
A segunda questão, de que o artigo não se refere a acessórios ou munição referidos nos arts. 12 e 16 da Lei 10.826/03 -tornando típica por conseqüência a conduta de posse de acessório ou munição -foi resolvida pelo art. 70, do Decreto n.º 5.123/04, que estabeleceu que a entrega da arma de fogo, acessório ou munição, de que tratam os arts. 31 e 32 da Lei 10.826, de 2003, deverá ser feita na Polícia Federal ou em órgãos por elas credenciados.
Por sinal, seria absolutamente ilógico ser estabelecida possibilidade de entrega da arma de fogo e não da munição, dado que, então, aquele que quisesse entregar sua arma à Polícia só poderia entregar a arma, pois que se levasse também a munição teria que, obrigatoriamente, ser preso em flagrante, uma vez que estaria ferindo ou art. 14 ou o 16, da Lei 10.826/03, dependendo de ser munição de uso permitido, restrito ou proibido. Igualmente poderia, um dia, haver prisão em flagrante em vista da guarda de dita munição em casa ou no local de trabalho crime permanente, posto tratar-se de conduta típica prevista nos arts. 12 e 16 da mesma Lei. Surgiria, então, a única hipótese viável, ainda que absurda, para que aquele que quisesse entregar a arma não viesse a ser preso em fragrante: entregar a arma à Polícia e desfazer-se, de alguma forma, da munição (enterrar no jardim da casa, ou jogar no lixo, ou no mato, ou no terreno alheio, ou na rua, ou no rio, etc., etc.). De convir, por demais absurdo.
Nem se levanta o fato de que possuir acessório ou munição é conduta altamente duvidosa quanto à lesividade, gerando choque com o princípio da proteção dos bens jurídicos, decorrente este, conforme René Ariel Dotti, de várias normas constitucionais (arts. 5.º, 6.º, 14, 144, 170 e s.), e pelo qual […] não é admissível a incriminação de condutas que não causem perigo ou dano aos bens corpóreos e incorpóreos inerentes aos indivíduos e à coletividade.(XIX)
Em arremate cumpre concluir que o comentado art. 32 alcança a entrega de qualquer tipo de arma de fogo, bem assim acessório e munição. E, existindo boa-fé, o que entrega a arma receberá indenização. Inexistindo, ainda assim a arma poderá ser entregue, só que, então, sem recebimento de indenização.
Notas:
(I) BRASIL. Lei Federal n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Dispõe sobre o registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas SINARM, define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 2003.
(II) Art. 37. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, ocorrida em 23.12.03, conforme nota I, acima.
(III) BRASIL. Decreto Federal n.º 5.123, de 1º de julho de 2004. Regulamenta a Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispões sobre o registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas SINARM e define crimes. Diário Oficial da União, Brasília, 2 jul. 2004.
(IV) BRASIL. Decreto Federal n.º 2.222, de 8 de maio de 1997. Regulamenta a Lei 9.437, de 20 de fevereiro de 1997, que institui o Sistema Nacional de Armas SINARM, estabelece condições para o registro e para o porte de arma de fogo, define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 9 maio 1997.
(V) BRASIL. Lei Federal nº 9.437, de 20 de fevereiro de 1997. Institui o Sistema Nacional de Armas SINARM, estabelece condições para o registro e para o porte de arma de fogo, define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 21 fev. 1997, com republicação em 25 fev. 1997.
(VI) BRASIL. Decreto Federal n.º 3.665, de 20 de novembro de 2000. Dá nova redação ao Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados (R-105). Diário Oficial da União, Brasília, 21 nov. 2000.
(VII) Art. 19. O regulamento desta Lei será expedido pelo Poder Executivo no prazo de 60 (sessenta) dias.
(VIII) Art. 36. É revogada a Lei 9.437, de 20 de fevereiro de 1997.
(VIII) JESUS, Damásio. Estatuto do Desarmamento: medida provisória pode adiar o início de vigência de norma penal incriminadora? Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal. Porto Alegre: Síntese. v. 26, p. 10 e 12, jun., – jul. 2004. Também constante in RT 827/486-502.
(X) BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988. Diário Oficial de União n.º 191-A, Brasília, 5 out. 1988. Preâmbulo e artigos 1º e 2º.
(XI) Diário Oficial da União de 19 de março de 2004.
(XII) BRASIL. Lei Federal n.º 10.884, de 17 de junho de 2004. Altera os prazos previstos nos arts. 29, 30 e 32 da Lei 10.826, de 22 de dezembro de 2003, e os arts. 5.º e 6.º da referida Lei e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 18 jun. 2004.
(XIII) Diário Oficial da União de 18 de dezembro de 2004, edição extra.
(XIV) PARANÁ. Lei Estadual n.º 14.171, de 5 de novembro de 2003. Institui o sistema de bônus e de pontuação para merecimento aos Policiais Civis e Militares, pela apreensão de armas, conforme especifica. Diário Oficial do Estado, Curitiba, 6 nov. 2003.
(XV) Constituição da República Federativa do Brasil: Art. 167. São vedados: I o início de programas ou projetos não incluídos na lei orçamentária anual; II a realização de despesas ou a assunção de obrigações diretas que excedam os créditos orçamentários ou adicionais.
(XVI) Processo n.º 0268376-3, julgamento de 12.08.04.
(XVII) THUMS, Gilberto. Estatuto do desarmamento fronteiras entre racionalidade e razoabilidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 48: […] Resta evidente que o art. 32 não pode alcançar armas de uso proibido e que se refere exclusivamente ao art. 12 e ao art. 14, este apenas na conduta ?manter sob guarda?, do Estatuto do Desarmamento.
(XVIII) RT 827/599: […] O período da ?vacatio legis?, inserido no art. 32 da Lei 10.826/2003, diz respeito a prazo concedido para os casos de possuidores ou proprietários de armas de fogo não registradas entregá-las à polícia; o referido dispositivo não se refere à munição de arma de uso restrito […].
(XIX) DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal parte geral. São Paulo: Forense, 2001. p. 62.
Sérgio Canan é advogado, mestre em Direito pela Universidade Paranaense, professor de Direito Penal na graduação e na pós-graduação e Coordenador do Estágio Simulado de Prática de Processo Penal da Universidade Paranaense, campus Toledo, Paraná.