Povos, sabeis pois, de uma vez por todas, que a natureza quis preservar-vos da ciência, como a mãe arranca uma arma perigosa das mãos do filho; que todos os segredos que ela vos oculta são outros tantos males de que vos resguarda e que a dificuldade que encontrais em vos instruir não é o menor dos seus benefícios. Os homens são perversos; seriam piores ainda se tivessem tido a infelicidade de nascer sábios. Rousseau
A discussão sobre o processo de alteração e reforma da organização política-institucional-internacional, baseado no sistema plurilateral, não é recente. A simples existência de arranjos internacionais, românticos pela sua própria natureza, pressupõe na sua configuração atual, de forma permanente, um desequilíbrio. Esta característica inerente não é desejável. Contudo, é verdadeira em função das diferenças entre os atores internacionais e suas qualidades culturais singulares.
A compreensão inicial sobre a desorganização internacional é freqüentemente referida pelos pragmáticos como o grande limitador da possibilidade de construção de um ideal comunitário. O escapismo da democracia, integralmente participativa e plural, buscado pelos utopistas modernos, é igualmente restrita e débil. Já o federalismo estatista que aceita as diferenças organizativas dos Estados é igualmente considerado frágil em função das limitações impostas pela normativa internacional. O resultado é a inexistência de alternativas verdadeiras para a constituição de um cenário internacional desejoso de abandonar suas características pré-iluministas.
A reforma dentro do sistema encontra as limitações fáticas que o tema aponta. Como conseqüência a essas mudanças pontuais, definidas como necessárias e legítimas, e a alteração na configuração do equilíbrio internacional, a reforma é parcial e não enfrenta o status quo organizativo internacional. O debate contemporâneo tem exigido uma correção de rumos num sentido instrumental, ou seja, em função das mudanças que se avizinham, um conjunto de medidas revisoras do sistema de organização político internacional pretende entregar aos participantes a esperança de um novo sistema estruturado sobre as velhas bases da não-ingerência, da independência soberana e da autodeterminação.
O legado histórico recente tem demonstrado a impossibilidade de manter o equilíbrio internacional nos termos apregoados pela Organização das Nações Unidas, pelo Direito Internacional clássico e pelas doutrinas políticas internacionais baseadas no extremo realismo ou no extremo utopismo. A crença no institucionalismo internacional é previamente derrotado já que aposta numa estrutura renovada sobre os moldes antigos do poder estatal não-diluível.
A construção de uma alternativa passa efetivamente pela revisão e ou uma rescisão unilateral do contrato que atualmente vincula os sujeitos internacionais em termos descomprometidos. Neste procedimento revisor um reforço estrutural depende de duas ações fundantes: o primeiro requer um compromisso em termos de centralidade institucional baseada em força autônoma e coercitiva não-estatal, o segundo exige uma ação preordenada e transfixante universal de natureza democrática ultraliberal.
No primeiro caso a capacidade de sanção das instituições internacionais passaria a ser um elemento fundante da estrutura política internacional e, adotado, de forma uniforme, coerente e imparcial, sempre que os elementos mais caros a humanidade estivessem ameaçados. No conseqüente, o direcionamento exige a adoção da soberania popular extremada com o objetivo de demandar a extinção do Estado ou dar ao mesmo um limite instrumental de mero conformador dos desejos individuais gerais, baseados num novo humanismo. Tal aporte estaria garantindo uma exclusão absoluta do Estado de todas as políticas de interesse coletivo e uma liberdade absoluta dos sujeitos diante do mesmo.
Naquele momento realista-utópico ainda haveria a coexistência dos espaços políticos estatais domésticos e o espaço institucional internacional atuante. Contudo, a difícil transição representaria o período de superação do velho acordo que deu origem ao estatismo representativo, que absurdamente ainda aceitamos, e a valorização do individualismo é, como conseqüência, o momento edificador da ditadura democrática universal e do ultra-liberalismo positivo.
A identificação do Estado com o inimigo da humanidade é passo conseqüente do pós-realismo utópico nas instituições internacionais que irá se impor diante do anacronismo geral dos grupos que lutam por espaços de poder, com a covarde anuência geral. No cenário hodierno as instituições internacionais são o arremedo de um processo tendente a pensar que o coletivo depende de movimentos organizados e segmentados de manutenção de padrões. Se o artifício humano é sempre imperfeito, pobre teocentrismo castrador, e como tal melhor não tê-lo. A ignorância individual segue sendo um bom caminho.
Leonardo Arquimimo de Carvalho é advogado, pesquisador da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EDESP/FGV).