Pós-escrito ou quando os textos chegaram

A trajetória de um texto, depois que sai do controle de seu autor, tem sabor de aventura. Às vezes pousa suavemente na folha do papel jornal com a graça e a leveza das borboletas, que temem assustar a folha em que se assentam. Em outras, as palavras se entrechocam furiosamente como o mar revolto por movimentos internos a desequilibrar a placidez de espelho. Outro texto pode gravar-se no papel como criança travessa, a esconder-se, a dar cambalhotas, a trocar intencionalmente de lugar os objetos da casa.

Borboleta, mar ou criança, quando os textos chegam aos olhos do leitor, doam-se generosamente e pedem, tão-somente, em troca a inteligência e a sensibilidade da interpretação, da constituição de sentidos e significação.

Em meu texto anterior, publicado em Educação em Pauta no dia 21 de março passado, vi estampada sempre com grande alegria uma pequena crônica intitulada Operários em construção ou enquanto os textos não chegam…  Nela, a figura imaginada de um professor, ao passar entre as carteiras da sala de aula, observava os alunos a escrever um texto sobre exclusão. O discurso do professor mesclava-se com a produção escrita dos alunos em polifonia desajeitada e desigual. A escrita dos estudantes apresentava defeitos ortográficos de monta. Na versão original, guardada ciosamente em meu computador, a frase composta por exemplos tirados de redações de vestibular distinguia-se do restante da narração do professor por estar em itálico e com evidentes erros ortográficos.

Tomo a liberdade de reproduzir o trecho com descrição das trocas ortográficas: ?a exclução (com cê e cedilha) derrepente (ligado com dois erres) impedirão (o verbo no plural discordava do sujeito e apresentava a grafia do futuro quando estava no imperfeito impediram) a entrada dos pobre (sem o esse final) na escola concerteza (sem separar os dois vocábulos) devido a (sem o acento diferencial de crase) dificculdade (com duas consoantes) onde (em lugar de que) eles tem (sem acento) de estudar?.

Cumprindo a função para a qual foi construído, o computador corrigiu, na medida do possível, a ortografia inadequada e uniformizou a fonte. Assim, o que deveria ser a reprodução do texto dos alunos ficou incorporado ao meu discurso, como se o período fosse um só registro verbal.

Na primeira leitura, surpreendi-me desagradavelmente. Relendo, iluminou meu cérebro a imagem de um fantasma escritor a supervisionar meus escritos, interferindo, alterando, decidindo.

Deixo de lado essa visão persecutória e reflito sobre a presença do computador em nossa escrita. Porque foi a intermediação dele que transformou a polifonia proposta em monofonia equivocada.

Muito ouvimos falar a respeito das maravilhas dessa nova tecnologia, na sua capacidade armazenadora, na disponibilização de uma imensa galeria de recursos gráficos, na rapidez e destreza com que põe à disposição do usuário modos e linguagens diversificadas.

Fernanda Freire, ao tratar de Formas da materialidade lingüística, gêneros do discurso e interfaces, no livro A leitura nos oceanos da Internet, afirma a ação regulatória da linguagem computacional para ?minimizar, de alguma forma, os efeitos indesejáveis da própria linguagem (…) para torná-la homogênea, estável, imutável. Deixa-se de fora exatamente aquilo que pode ser mais interessante do ponto de vista da linguagem: as novas e diferentes condições de produção do discurso?.

As limitações dos corretores ortográficos que nos auxiliam em momentos de dúvida e hesitação mostram-se intransigentes quando se pretende efeitos de linguagem que extrapolam o uso cotidiano.

Prefiro adotar as palavras de Rosa Montero quando, em A louca da casa, magnífica narrativa sobre a arte de escrever e os papéis do escritor e da literatura, expõe sua crença: ?Para mim, o compromisso do escritor não consiste em engajar suas obras a favor de uma causa (o utilitarismo panfletário é traição máxima ao ofício; a literatura é um caminho de conhecimento que precisamos percorrer carregados de perguntas, não de respostas), e sim em permanecer sempre alerta contra o senso comum, contra o preconceito próprio, contra todas as idéias herdadas e não questionadas que se infiltram insidiosamente em nossa cabeça, venenosas como o cianeto, inertes como o chumbo, mas idéias ruins que induzem à preguiça intelectual. Para mim, escrever é uma maneira de pensar; e deve ser o pensamento mais limpo, mais livre e mais rigoroso possível.?

Até mesmo uma troca de poucos símbolos gráficos (letras e acentos) dá motivo, quando pensamos em escrita e leitura, para questionar o mundo e a nós mesmos. Até porque somos seres de linguagem, e tudo o que significa não nos é alheio, e nem existe sem a capacidade humana de interpretar.

Se o texto me chegou ao olhos modificado por intervenção da máquina, nada mais indicado que essa mudança motive outras e diversas reflexões. Escrever, como alegam os alunos, é muito difícil. Mas viver também não é muito dificultoso, como ensina mestre Guimarães Rosa? E os textos, escritores e máquinas não se trançam e tramam infinitamente?

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