Ao final de meu comentário sobre o caso do terrorista Unabomber, havia afirmado que hoje não se trata mais de cartas-bomba. Agora temos corpos que se explodem. Homens e mulheres-bomba.
Há uma notável mudança de sentido na passagem da carta-bomba para o corpo-bomba. Ela é apreensível pela escrita, em primeiro lugar. Na língua francesa a lettre (carta) é homófona de l être (o ser). Evidentemente que a referência à língua francesa não se limita ao que podemos aprender no idioma estrangeiro. Mais além, procuro indicar que na passagem da carta ao ser, ou ainda, da carta ao corpo, há tanto uma posição do sujeito diferenciada, quanto uma Outra economia de gozo.
Se para o Unabomber se tratava de fazer explodir o Outro através das cartas-bomba, no corpo bomba, enquanto "corpolinguagem", trata-se de fazer explodir a si mesmo e ao Outro, ao mesmo tempo.
O que é surpreendente no caso dos homens e mulheres que se explodem é a presença maciça do gozo. O gozo da explosão. Como disse Reem Saleh Rayishi, a primeira mulher bomba usada por militantes islâmicos, momentos antes de se explodir, numa gravação em vídeo:
"Por Deus, eu desejava ser a primeira mulher a executar uma operação em busca de martírio, em que meu corpo pudesse ser espalhado no ar."
A utilização de mulheres-bomba é recente na história do terrorismo. A primeira mulher-bomba foi uma garota libanesa de 17 anos chamada Sana Mehaydali. Em 1985, uma organização secular pró-libanesa a enviou para se explodir perto de alguns veículos carregando soldados israelenses no Líbano.
Para acompanhar essa questão, deve-se notar que houve uma influência das organizações seculares, nas religiosas. O que significa que o surgimento das mulheres-bomba se realizou, desde o início, sem qualquer tipo de apoio ou participação das organizações religiosas. As organizações terroristas fundamentalistas não aceitavam a presença de mulheres-mártires. Tal proibição se encontrava justificada pelo princípio de que a mulher muçulmana, nessas organizações, não estava autorizada a tomar decisões sobre a sua própria vida. Contudo, em 27 de fevereiro de 2002 a sustentação da proibição foi alterada. Nesse dia, Wafa Idris se explodiu como mártir, no centro de Jerusalém, pelo grupo fundamentalista Brigada dos mártires.
Até então contrário a esse tipo de conduta, o líder espiritual do grupo Hamas, Ahmad Yassim, afirmou em público, nessa ocasião, que:
"…se permite a uma mulher muçulmana praticar uma Jihad (guerra santa), e lutar contra contra o inimigo que invade a Terra Santa".
O que é notável nessa modificação da proibição é que não só as mulheres passaram a ter direito divino para se explodirem, quanto a explosão passou a ser também um dever. Se observarmos com cuidado, vamos perceber que a ausência de direitos sobre a própria vida se refez. Só que agora, o que antes era proibição passouà condição deobrigação religiosa.
Diferentes discussões foram mantidas, entre os líderes religiosos, sobre as mulheres-bomba. Isso porque surgiu a questão se uma mulher, por exemplo, poderia ir desacompanhada da presença de um homem para praticar o martírio. Tal discussão procurava contemplar o problema da proibição das mulheres andarem sozinhas nas ruas.
A questão se torna um pouco mais complexa quando tomamos conhecimento que as mulheres-bomba da Chechênia, chamadas de "viúvas negras", são levadas ao martírio como único meio de conquistar um benefício em dinheiro para suas famílias, após a morte dos maridos. Alternativa que encontram junto a um meio social em que estão proibidas de trabalhar. Por outro lado, transformar-se em mulher-bomba é tambem a saída para as mulheres se desvencilharem de uma mancha moral. Nesses casos, principalmente de acusação de adultério, a eliminação da própria vida é considerada um ato que permite manter a honra da família.
Diferentemente de uma posição que se estenderia em repertoriar as diferentes motivações alegadas para se tornar mulher-bomba, o que nos interessa aqui, em primeiro lugar, é a potência, a força da causa. Ela foi enunciada por Leila Khaled, a seqüestradora da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Diz ela:
"Tenho uma causa maior e mais nobre que a minha própria, uma causa a qual todos os interesses e preocupações particulares precisam se subordinar". Ao que acrescenta: "Eu represento palestinos, não mulheres".
Nas diferentes análises disponíveis sobre terrorismo, há uma dominância do ponto de vista segundo o qual a condição de mulher-bomba implica numa retomada do direito de decidir, pelas envolvidas. Procurei expor anteriormente que a condição de mulher-bomba, não chega a alterar o direito de decisão sobre a própria vida, principalmente depois de se ter transformado numa obrigação religiosa. Contudo, há na condição de mulher-bomba uma conquista de superioridade em relação aos homens. Uma vez que as mulheres são capazes de promover menos desconfiança por parte das forças de segurança, conseguem obter melhor êxito em suas ações. Some-se a isso o fato de que as mulheres-bomba "têm permissão para violar ensinamentos islâmicos, evitando o uso do véu, e obtendo autorização de estar sem um acompanhante masculino".
Vou procurar me deter sobre um ponto que, ao mesmo tempo em que não desconsidera a conquista das mulheres-bomba, não transforma tal condição em meio de apagamento do preço de suas ações – a própria vida.
Para iniciar uma análise deste ponto, deve-se conectá-lo a um outro que lhe dá suporte, qual seja, "a crença religiosa popular, partilhada tanto por organizações seculares quanto religiosas, na vida após a morte".
Ao se explodirem, os homens e mulheres-bomba garantem direitos no Paraíso. Para os homens, "rios de vinho, montanhas de ouro e 72 virgens para deflorar. Para as mulheres, caso tenham se mantido puras, o direito a um homem casto e poderem levar 72 parentes consigo". Dessa maneira, o líder religioso palestino Ahmad Yassin, considerado um homem santo, transmite sua mensagem aos fiéis, em julho de 2002.
Ainda que a crença compartilhada na vida após a morte permita situar uma referência à altura dos atos praticados, vale lembrar que tendemos a admitir sua eficácia em função de seu caráter religioso. Neste ponto, considero que seja preciso situar com um pouco mais de precisão o que entendemos por religioso.
Como nos lembra o psicanalista Charles Melman, no artigo intitulado "Como reconhecer uma seita", assistimos hoje a "um deslocamento da religião para o fenomeno das seitas. O que implica em considerar no lugar da crença, uma dimensão psíquica bem diferente: de convicção e de certeza". Continua ele:
"Um outro traço merece distinguir essas organizações sectárias…o fundador é, em geral, eminentemente encarnado, e a vida do grupo está organizada a partir do que é seu saber e sua autoridade".
Sendo verdade que podemos associar as ações de algumas mulheres-bomba a uma objetificação ao desejo do fundador, tal condição só se sustenta caso consideremos que, através das seitas, esse homem, enquanto líder religioso, transforma-se em Deus. Como afirmou Reem Saleh Raiyshi, uma das mulheres-bomba do grupo terrorista Hamas:
"Deus tornou-me mártir".
De outro lado, sabemos que muitas das mulheres-bomba praticaram seus atos por vingança, por privação e desonra.
Seja através de um Deus que se apresenta encarnado, seja através de um ódio que culmina na vingança, as mulheres são capazes de se explodir em nome de Deus e do ódio. Encontraríamos assim a confirmação da loucura feminina?
Tanto não é uma questão redutível a desregramento, ou mesmo de diferença cultural, que o fenômeno deve ser situado numa relação com um Outro que determina tais atos. Se as mulheres precisam se explodir no real, como forma de realizar o ódio e a devoção, é mesmo porque o que asdefine agora é uma cultura do sacrifício feminino, que legitima, que promove sua explosão. Afinal de contas, a explosão do corpo, a explosão das representações, a explosão de todos os limites, não participa do gozo feminino em sua extremidade real? O que é que nos diz Raam Saleh Rayishi?
"…eu desejava… que meu corpo fosse espalhado no ar".
Será que esse apelo que veio primeiramente das organizações seculares para a utilização de mulheres-bomba, é a responsável, ao se legitimar pelas seitas religiosas, da explosão das mulheres? Minha questão é saber se podemos afirmar que esse fenômeno das mulheres-bomba é algo que se encontra somente lá, em Outro lugar, no Oriente Médio, e que suas causas são internas a tal distinção político-cultural.
Parto do princípio, como psicanalista, que qualquer tentativa de excluir por inteiro a participação no Outro, e do Outro, é uma posição que limita a possibilidade de admitir que o Outro é íntimo. Ou seja, que não há algo que acontece somente no Oriente Médio. O Oriente Médio é próximo. Sua proximidade se encontra diretamente relacionada pela possibilidade de com ele, Outro, estabelecer uma relação. Portanto, se os fundamentalistas atribuem ao estrangeiro uma significação de demoníaco e devasso, é mesmo porque, essa é a forma pela qual eles nos acusam, nós da civilização científico-capitalista, de termos nos transformado nos traidores de Deus. Nós o traímos, porque cultivamos o consumo. Nós o profanamos, porque damos o sexo a ver. Nós o desonramos, pela lascívia feminina.
Qual a resposta que encontramos, pelas mulheres-bomba, para a civilização capitalista? Aquilo que é causa de desejo para um, torna-se certeza no Outro. Essa certeza é mortífera, ela explode com qualquer possibilidade de contradição, de diferença; e é nisso que ela participa da crença, no caso, na crença do outro mundo. Quando as mulheres se explodem encontramos realizada uma mensagem. Aqui, na Terra Santa, explodimos com o que é causa de desejo para vocês, ou seja, com as mulheres. Em outras palavras, a explosão das mulheres é a realização da devoção a Deus. Justamente a esse Deus que, pela ciência e pelo capitalismo, foi eliminado.
Uma vez que a devoção a Deus se realiza agora pelo martírio feminino,enquanto explosão do feminino, homens e mulheres passam a ser definidos por um qualificativo comum. Homens e mulheres-bomba. O objeto do martírio passa a ser integrado na diferença sexual.
Quando começamos a acreditar e defender a idéia de que o martírio é uma saída admissível para as mulheres conquistarem seus lugares, é porque já nos encontramos, sem saber, compartilhando com o mandamento de extermínio da diferença. À contrário do que pôde sempre parecer para uma ideologia romântica de adaptação sexual, as mulheres são capazes de se explodirem e acreditarem que há gozo nisso. Participam, assim, do culto ao Deus que exige sua própria eliminação. Ao seu lado, proliferam seitas religiosas, comandadas por homens dispostos a se tornarem deuses vorazes. Deus agora quer a explosão de seus fiéis.
Por que se explodem as mulheres? Porque é através delas, pela sua explosão, que um voto íntimo se realiza. O voto da explosão do feminino como condição para sustentar Ódio ao Outro. Um ódio explosivo. De tal forma decisivo como gerador de certeza, que a explosão de si mesmo se apresenta como o par necessário, sem contar como par. Sem contar como par, porque isso agora faz parte. Faz parte de nosso cotidiano. O sacrifício dos corpos se transformou em espetáculo.
O curioso é que a explosão das mulheres já não nos chame tanto a atenção. Essa espécie de adormecimento à explosão do feminino, já participa do congelamento do desejo.
Mauro Mendes Dias é psicanalista em Campinas e São Paulo e membro do Núcleo de Direito e Psicanálise do PPGD-UFPR. É membro da Escola Psicanalítica de Campinas e, além da vários textos publicados tem, no prelo, o livro ?Por causa do pior?, Editora Iluminuras.
Texto apresentado no dia 26.11.04, no Simpósio sobre Fanatismo e Terrorismo, promovido pelo Núcleo de Direito e Psicanálise do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná. Foi seguido da apresentação de um outro texto: "A explosão do riso: uma pontuação ao fanatismo e terrorismo".