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Em um curso sobre “Decisões Éticas em Fim de Vida”, na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, uma das palestrantes surpreendeu-se com a reação da seleta plateia ao questionamento: “Vocês já pensaram como querem morrer?”. A maioria dos participantes, médicos e estudantes de Medicina, responderam negativamente. Ao que, brilhantemente, a americana, Margaret P. Battin, PhD da Universidade de Utah, comentou: “Why not?”.

Em se tratando de humanização da Medicina, os cuidados paliativos oferecidos ao doente terminal permitem a aceitação da morte, como inexorável. O avanço tecnológico na medicina encoraja o prolongamento a qualquer custo da existência do paciente, pois já não se pode dizer que estar mantendo sinais vitais por máquinas seja uma forma de vida.

Na interpretação do jurista José Afonso da Silva, o direito à vida (conforme disposto no art. 5º caput, da Constituição Federal), desde a concepção, é exatamente o mesmo que tutela a morte, como um processo natural, sobre o qual não cabem intervenções de outrem. Nesse sentido, se biologicamente o corpo já não possui autonomia funcional, cabe ao detentor desse processo (“do fluir da vida”) decidir se deseja um prolongamento artificial. Porém, tal manifestação de vontade somente será possível enquanto o cidadão for capaz de se expressar, com clareza e sanidade.

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Para se citar experiências internacionais, no Reino Unido o paciente é considerado um consumidor. Como tal, sua escolha, quanto aos tratamentos e cuidados a serem recebidos, é respeitada. Surge, porém, do ponto de vista ético e da autonomia do médico uma outra questão: mesmo que o tratamento seja inócuo ou até possa trazer algum evento colateral, devem médico e demais profissionais da saúde respeitar a autonomia do paciente? É um questionamento  que não se pode ignorar quando se pretende que seja observada essa autonomia.

No Brasil, tem-se desenvolvido debates, considerando o princípio da autonomia do paciente, para que o cidadão possa decidir os limites do tratamento a que quer se submeter, sem que o médico fique temerário na presença de opiniões diversas.

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O Conselho Federal de Medicina (CFM) discute a normatização, por meio de Resoluções, de dois instrumentos: o Testamento Vital (ou Diretiva Antecipada de Vontade) e a Ordem de Não Reanimar (ONR).

Atualmente, o Código de Ética Médica contempla dois artigos que permitem inferir ser a posição da classe médica o respeito à autonomia do paciente, sem o paternalismo da Medicina tradicional. No processo de tomada de decisões profissionais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. Da mesma forma ratifica a posição pela ortotanásia, desde que em situações clínicas irreversíveis e terminais.

O Testamento Vital, empregado em países como Espanha, Holanda e Estados Unidos, permite que o cidadão determine os limites do tratamento que irá receber caso tenha uma doença incurável.

A ordem de não reanimar (ONR) é o registro da decisão do paciente ou seu representante legal de não se empregar ações em caso de parada cardíaca – e deve constar no prontuário para que os profissionais tenham a segurança de respeitá-la. Embora ainda não esteja regulamentada, é uma prática já realizada no país, e complementa a decisão da ortotanásia.

A resistência em discutir assuntos como doação de órgãos, Diretivas Antecipadas ou Testamento Vital é bastante comum em países de maioria jovem como o Brasil. Todavia, esse vácuo acaba por gerar consequências econômicas e sociais, com reflexo direto na vida em sociedade.

Não é racional argumentar que deixar pacientes morrer de sua doença terminal é o mesmo que eutanásia. Todavia, esse falso argumento é frequente,mente usado para indicar que se tratam de condutas similares. No mundo jurídico, uma lei que em condições especiais permita ao profissional médico “deixar morrer” o paciente, pela interrupção de um tratamento que prolonga a vida, não é ajudar o paciente a morrer. No Brasil, a eutanásia corresponde ao delito do homicídio ou ainda ao suicídio assistido.

Os Testamentos Vitais ou as Diretivas Antecipadas de Vontade são documentos, que, quando aceitos em determinado ordenamento jurídico, poderão dispor sobre não receber tratamentos experimentais, não receber tratamento de suporte das funções vitais e não ser submetido a tratamento fútil ou inútil. Porém, também pode apresentar o desejo de uma pessoa de não ser informada caso haja um prognóstico fatal, ou ainda de receber todos os cuidados de saúde possíveis a minorar a doença de que sofre ou pode vir a sofrer.

Uma das iniciativas existentes no país está em São Paulo, pela lei 10.241/1999 sobre o direito a uma morte mais digna, como foi o caso do ex-governador do estado, Mário Covas, em 1999, que optou por não receber tratamento para câncer. Consta, no antigo 2º, como direito dos usuários dos serviços de saúde: “VII – consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados”. Ainda, explicitamente: XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida; e XXIV – optar pelo local de morte.

Vale destacar o Projeto de Lei do Senado n° 116 de 2000, em trâmite no Congresso, que propõe a exclusão de ilicitude para os casos de morte iminente e inevitável, em que qualquer meio de prolongamento da vida poderá ser “desproporcional e extraordinário”. Apenas deixará de ser crime o caso de uso de cuidados paliativos ao paciente terminal, em havendo a autorização do paciente, ou na impossibilidade dele, de um responsável legal.

Nesse emaranhado de ideias, ao menos algumas diretrizes podem ser adotadas pelas equipes de saúde, independente de lei específica: a explicação ao paciente sobre sua doença, evolução, tipos de tratamento, possibilidade de cura e a que se referem os cuidados paliativos. Nas instituições de saúde deve haver equipes especializadas em aconselhamento familiar. E, sobretudo, o respeito ao paciente, na preservação do sigilo de suas informações.

Em tempos em que se discute o direito à saúde, a uma assistência universal e de qualidade técnica e humana, o ‘como’ morrer pode resvalar na concepção de assunto a ser tratado sem urgência. Há dados, porém, que apontam para uma ocupação de 40% dos leitos do país por pacientes terminais, sem chance de cura. Tal situação pode inviabilizar aos cuidados de um paciente com quadro clínico reversível.

Ao pensar e fixar as diretrizes de sua morte, o paciente terminal, paradoxalmente, pode salvar outra vida. Portanto, à reflexão…

Antonio Carlos Roselli é presidente da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-hospitalar da OAB/SP; membro da Comissão Nacional de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina (CFM) e membro da Câmara Técnica de Bioética do CREMESP – acroselli@uol.com.br

Sandra Franco é consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, membro efetivo da Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico Hospitalar da OAB/SP epresidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde- drasandra@sfranconsultoria.com.br