Em interessante artigo sob o título Ponto-e-vírgula, publicado neste importante órgão de divulgação em data de 27.4.2003, a eminente desembargadora Maria Berenice Dias discorre acerca do que entende deva ser a correta interpretação do inciso I do artigo 1.829 do Código Civil, mais especificamente no que se refere à hipótese em que o cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens concorre com os descendentes na herança. Sustenta, em suma, a ilustre articulista ” pelos fundamentos que lá invoca ” que, contrariamente à interpretação que até agora se tem dado, a concorrência do cônjuge com os descendentes somente se dá quando inexistem bens particulares do autor da herança.
O ponto de vista de minha estimada colega, no entanto, colide com aquele que sustentei em artigo anterior, já veiculado, razão pela qual, para incrementar o debate que, por certo, somente propiciará o aprofundamento da reflexão, é que passo a analisar os argumentos por ela expendidos.
Divirjo de sua interpretação gramatical fundamentada no fato de que, segundo sustenta a autora, “o sinal de pontuação ponto-e-vírgula, que tem por finalidade estabelecer o seccionamento entre duas idéias”. Com a devida vênia, não é o que ensinam os gramáticos.
ADALBERTO J. KASPARY (in Habeas Verba ” Português para Juristas ” 1994 ” Livraria do Advogado Ed. ” p. 136 e segs.), depois de admitir que o “caráter impreciso do ponto-e-vírgula dificulta sobremaneira qualquer tentativa de normatizar-lhe o uso”, passa a elencar diversas hipóteses de cabimento dessa pontuação, ensinando que, entre outras situações, utiliza-se o ponto-e-vírgula “para separar as partes, séries ou membros de frases que já estão interiormente separados por vírgula”. Em idêntico sentido é a lição de ROCHA LIMA (Gramática Normativa da Língua Portuguesa ” 1963 ” F. Briguiet & Cia. Editores ” p. 548 e segs.).
E é bem esse o caso do inciso I do art. 1.829 do Código Civil, onde se tem uma longa frase, em que já havia o emprego da vírgula em três oportunidades. Nada mais natural, assim, que fosse, na quarta, empregado o ponto-e-vírgula, sob pena de inviabilizar a compreensão da idéia expressada. Isso, no entanto, não significa qualquer segmentação entre a primeira parte da frase e a última, o que somente seria possível se utilizado fosse o ponto final. Assim, com a devida vênia, a interpretação gramatical não favorece a tese de que há no dispositivo legal em foco um seccionamento entre duas idéias, o que afastaria a dupla negação.
Ocorre, ademais, que essa DUPLA NEGAÇÃO (que resulta da associação do “SALVO SE…” (…) com o “NÃO HOUVER DEIXADO BENS PARTICULARES”) está evidenciada também no emprego do OU ” que é uma conjunção alternativa, que, por sua própria natureza, relaciona os elementos da frase (por isso, repito, não há como segmentar a seqüência enumerativa). Ou seja, estão sendo explicitados ali quais são os regimes de bens em que não há concorrência, e, dentre esses, em último lugar na seqüência enumerativa, está o regime da comunhão parcial onde não haja bens particulares. Contrariamente, havendo bens particulares, há concorrência.
Por fim, também a interpretação finalística do dispositivo legal não é favorável à tese defendida pela aguerrida magistrada. De acordo com o que esclarece o PROF. MIGUEL REALE, a razão determinante da concorrência do cônjuge com os descendentes, no regime da comunhão parcial, é justamente prevenir o desamparo em que ficaria o cônjuge sobrevivente na eventualidade de o autor da herança haver deixado apenas bens particulares, circunstância em que, não fosse a regra da concorrência, o sobrevivente, que não teria direito à meação, não seria também herdeiro, ficando desta forma inteiramente desprotegido (salvo, é claro, a hipótese de ser contemplado em testamento). Por esse motivo é que lhe foi assegurado direito a concorrer com os descendentes, COMO HERDEIRO DOS BENS PARTICULARES. Assim, é certo, com a devida vênia, que a concorrência somente se justifica QUANDO HÁ BENS PARTICULARES, e não ao contrário, como sustenta a brilhante articulista! E isso também pela singela razão de que, quanto aos bens comuns, o cônjuge já tem direito à meação, não havendo motivo para uma dupla contemplação (meação mais direito à herança).
Em conclusão, tenho como evidenciado que a concorrência do cônjuge com os descendentes, no regime da comunhão parcial, somente se dá quando há bens particulares do autor da herança, e não o contrário.
Luiz Felipe Brasil Santos
é desembargador do TJRS, presidente do IBDFAM-RS, professor das Escolas da Magistratura e do MP.