Ponto Chic – Um endereço que fez a cabeça de todos nós – (Obrigado, Jayme Sunyê)

Foi nos anos 1960, quando o Brasil vivia a efervescência cultural, herança dos anos dourados do governo Juscelino Kubitschek, que Curitiba ganhava um endereço e logo ponto de encontro obrigatório da massa pensante local: o Ponto Chic, de Jayme Sunyê, abriu as portas na Galeria Lustosa, então referência arquitetônica da modernidade, e que era referência para passagem da Rua 15 de Novembro à Rua Marechal Deodoro.

Sunyê, que cerrou as portas só quase 25 anos depois, não hesitou em investir em cultura e bons produtos de leitura, chegando a manter aberta a porta 24 horas por dia, num tempo em que a cidade dormia cedo, mas os hábitos notívagos se restringiam aos endereços boêmios, como os bares tradicionais e as antológicas boates.

Não foi só o horário diferenciado que fez do endereço de Sunyê um endereço ímpar. Num tempo em que revistas importadas custavam muito caro e eram raras, o Ponto Chic era o único local em que muitas delas estavam à venda.

Um capítulo especial se refere aos jornais. Se títulos do exterior estavam na banca já no dia seguinte, exemplares brasileiros que habitualmente chegavam com grande atraso à cidade, no Ponto Chic, não raro, apareciam subitamente antes de serem encontrados em outros locais.

Era um tempo em que Sunyê alimentava a fome de ler da estudantada das universidades Católica e Federal, ambas localizadas no centro da cidade. A turma de Jornalismo, por exemplo, reservava sistematicamente o exemplar diário do Jornal da Tarde, publicado até hoje pelo Grupo Estadão e que, por incrível que pareça, era vespertino e chegava às bancas logo depois do almoço. Ao Ponto Chic, inclusive.

Era também o tempo em que o jornalista Mino Carta, que hoje pilota a revista Carta Capital, era imaginem! chefe de redação da não menos tradicional, e até hoje publicada, Quatro Rodas, motivo de coleção pelos fanáticos do automobilismo.

Alguém lembra dos antológicos Cahiers de Cinema, bíblia dos cinéfilos editada em francês? Ou dos Cadernos de Jornalismo e Comunicação, obra-prima bimestral então editada pelo Jornal do Brasil? E quem recorda das revistas de moda parece que até a Elle, original da França, tinha lugar de honra na banca, ou das publicações com as últimas novidades em ponto-de-cruz? Sabem o que mais tinha à venda lá? No mais originalíssimo inglês, os clássicos cadernos da National Geographic, diretamente vindos dos EUA, bem como as não menos conhecidas Time e Life.

Era um tempo de efervescência cultural, em pleno regime militar, quando as liberdades democráticas eram algo raro para se encontrar, e quando o Estadão publicava versos de Camões e o JT, receitas culinárias. Sunyê não hesitava em reservar para clientes certos o que chamava de "pérolas". Eram publicações que poderiam se recolhidas a qualquer momento pelos censores, mas que o bravo dono da banca sabia manter fora do alcance das mãos desse tipo de público. Ah, também não faltavam as indefectíveis revistas especializadas numa das mais nobres modalidades esportivas o xadrez.

Foi naquele espaço com talvez 40 metros quadrados, o chão coberto por tacos, as prateleiras de madeira cuidadosamente exibindo livros e revistas, um rés-do-chão junto ao balcão servindo de expositor para os jornais, que todos, estudantes, profissionais liberais, gente do comércio, passantes que cortam até hoje caminho pela galeria, ganharam parte de uma educação primorosa do saber ler, com o Jaymito como era carinhosamente chamado por nós, mesmo que tão mais jovens nos impregnando esse dever da sapiência popular via notícias, de grifados em línguas estrangeiras, ou de imagens dos gibis, encantos perenes das gerações que lá passaram.

Ah, o Ponto Chic, teimoso em ser endereço ao lado do até hoje existente Salão Santa Mônica e olha, talvez único remanescente da época em termos de ocupação comercial. Ah, ironia, logo o Ponto Chic, também transformado em salão de cabeleireiro anos depois, perdendo o charme e a aura do núcleo do conhecimento humano. O interior prosaico ganhou o falso glamour das paredes infinitamente brancas, com jeito de hospital, e imensas portas de vidro que substituíram a porta de treliça de aço, permitindo aos passantes ver o interior da loja, mesmo quando sem expediente.

Ali junto à soleira, um desfile de memórias como os já falecidos Álvaro Borges, que manejou os pincéis a partir de alguns livros de arte colhidos ali mesmo; um Alceu Schwab, engenheiro químico que teimou, em vida, em ser o expert em MPB, amigo dos tantos autores, atores, compositores e críticos, e que chegou a escrever um livro sobre a efervescência do Cassino Ahu; ou ainda alguém se lembra do antológico Aramis Millarch, que fez, não raro, do Ponto Chic endereço para encontro da literatura sobre folclore?

Solenes e engravatados, juízes e promotores souberam fazer do endereço a aura de bons autores do Direito; trabalhar em jornalismo tanto faz se nos então poderosos O Estado do Paraná, Diário do Paraná, até da Gazeta do Povo ou do Correio do Paraná -, significava buscar na banca de Sunyê o que havia de mais recente publicado nos jornais sobre, por exemplo a Guerra do Sete Dias, em 1967, deflagrada entre Israel e os países árabes, justo quando da comemoração do Yom Kippur. Ou comprar os considerados subversivos tablóides Polítika ou O Pasquim, que fizeram a cabeça de todos nós.

Mussa José Assis, Apolo Taborda França, Danilo Côrtes, o ainda há pouco finado João Dedeus Freitas Neto, Adherbal Fortes e outros tantos da fauna do velho e bom jornalismo, foram os culpados para que nós, da então nova geração de escribas, fizéssemos do Ponto Chic a casa do aprendizado do soletrar frases inteligíveis para leitores. Foi graças ao conteúdo dos tantos periódicos e revistas carregados das prateleiras do Ponto Chic, que formamos opinião própria e aprendemos a nobre missão de escrever bem, num tempo em que também tínhamos a obrigação de exímios datilógrafos, pilotando as então onipresentes máquinas de escrever Olivetti, em praticamente todas as redações.

Ler jornais do eixo Rio-São Paulo já era moda, mas instigante era conhecer também a versão dos mesmos fatos sob o ângulo de veículos como o bravo Correio do Povo, de Porto Alegre, então dirigido por um intrépido Breno Caldas, antes de a TV tomar conta dos espaços, chegando à frente das notícias que, nos jornais, contavam detalhes daquilo que as rádios falavam de forma sucinta.

O Ponto Chic existiu num tempo em que a hoje chamada mídia impressa imperava, coincidindo com a recém-nomeada Indústria Cultural que nos ensinou os caminhos rumo à Escola de Frankfurt de Adorno, Heidegger e afins. Quantas páginas de revistas e jornais da banca de Sunyê não repousam nos arquivos mortos (ou vivos) de quem gosta da pesquisa, da História, da lembrança dos fatos?

Foi ali, na Galeria Lustosa, que muitos de nós vimos, atônitos, a capa predominantemente em vermelho, tendo ao centro uma foice e um martelo em negro, ocupando três quartos do espaço onde, acima, sobre fundo branco e também em preto, estava escrito "Veja". Era 1968, e Sunyê, sem dúvida, ousou em exibir em primeira mão o que nem de longe era uma revista comunista, mas a mais nova revista semanal lançada pela Abril. Vendeu como água, mas Jaymito correu o risco de uma indesejada visita à Polícia Federal nos anos de chumbo.

Der Stern, Jornal da Tarde, Le Figaro, os clássicos de Edgard Allan Poe, Revue, Cebolinha ou Pato Donald, Il Expresso, ah, o Correio da Manhã, finado jornal carioca que se calou com o chegar de 1964, quando dirigido pela viúva Muniz Bittencourt, as coleções da Editora Abril, Almanaque Mundial, gibis como Fantasma ou Mandrake (é, ainda existia o Mandrake, ao lado do Homem Aranha e Super-X), enfim, isso e tudo o mais, Jayme Sunyê colocava nas nossas mãos, quando não aquele cartapácio mais um escrito pelo já finado, e sempre único, Hélio Silva, contando a História do Brasil do Império a Castello Branco. Uma respeitável coletânea formada por, acho, 15 livros, editados pela Civilização Brasileira. Dirigida, diga-se, pelo não menos histórico e socialista Ênio Silveira.

Chic, sim, era esse ponto, não por um charme plástico e arquitetônico, mas, e sim, porque sabia reunir a elite, a nata dos formadores de opinião que, e quase sempre, atravessavam o corredor da galeria para dar um pulo na então Charutaria do Raul, ou, mais adiante e lá na esquina com a rua 15, tomar uma fresca e experimentar o pão de queijo no até hoje e antológico Café Havaí.

Apetitosa era não só a perfumaria de uma casa de frangos que ficava então na esquina oposta, que dava para a Marechal Deodoro. Apetitosa mesmo era a seleção de produtos que Sunyê tratou de colocar nas estantes. Ali, o balcão não era o limite: a freguesia avançava balcão adentro, e jamais foi molestada em pegar nas mãos até artigos raros e protegidos (muitas vezes por causa do receio da ditadura) nos escaninhos mais abaixo do ponto de visão. Ainda ali adiante na Marechal, defronte à casa de frangos, A Dental Vieira era endereço certo de equipamentos, implementos e acessórios para odontólogos.

Pois é, foi ali, no Ponto Chic, que nós todos, velhos, novos, homens, mulheres, então estudantes, talvez hoje já parcialmente aposentados ou ainda na ativa, bebemos da fonte do saber, da vontade do querer sempre tanto mais.

O tempo passou, o Ponto Chic acabou e ficou na lembrança.

A lembrança de quem soube, e sempre, ter o orgulho de olhar nos olhos dos tantos que ali chegaram e aprenderam a viver intensamente, mais e mais, sorvendo as letras esparramadas no balcão, nas estantes, no rés-do-chão.

Por isso tudo, obrigado, Jayme Sunyê!

Raul Guilherme Urban é jornalista.

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