As acusações mais recentes sobre a existência de posturas antiamericanas no governo Lula criaram um ambiente propício à redargüição sobre os rumos da política externa brasileira. A envergadura política e relacional dos envolvidos na discussão demonstra um conflito relativamente normal nos meandros do poder, mas expôs fraturas nas opções do Estado motivadas por um aparelhamento da estrutura política que afeta a regularidade institucional.
Não há um conjunto de fenômenos que indica a existência de um antiamericanismo doutrinário e instrumental, mas se ele existisse a capacidade do mesmo de modificar os vínculos entre Brasil e EUA seria irrelevante. Aos estadunidenses não falta uma habilidade indispensável nas relações políticas internacionais que é o pragmatismo a qualquer preço. Já o Brasil atua pendularmente nos seus vínculos, em função das características personalíssimas da sucessão de mandatários e membros do staff.
No caso brasileiro este modelo de organização pode ser considerado adequado em função de limites consideráveis nos seus excedentes de poder. Mas, mesmo assim, uma racionalidade institucional é algumas vezes garantida pela memória e pelo habitus dos sujeitos responsáveis pela política externa. O rompimento com estas tradições pode ocorrer, mas o processo é muito demorado e nem sempre exitoso.
A crise verborrágica expõe determinados erros na opção estratégica adotada atualmente. Os equívocos graves não estão na proximidade com os governos populistas, na política graciosa em relação a alguns países africanos e latinos, no financiamento do desenvolvimento de parceiros, na priorização de políticas megalomaníacas em prejuízo de práticas mais concretas, na permanente perda de oportunidades e na incapacidade de articular de forma contínua as políticas domésticas com as internacionais, mas na falta de uma sinalização equilibrada de que se trata em um parceiro confiável e afeito a interesses superiores aos da mesquinharia ideológica jurássica.
A denúncia em torno da doutrinação de diplomatas comprova a singeleza do totalitarismo intelectual de esquerda e da patrulha ideológica. De qualquer maneira a síntese desta discussão é anterior e indiferente aos vínculos que o governo imagina comandar. A dispensabilidade do Estado é igualmente neste caso demonstrada. Os setores privados acabam redimindo os equívocos nas políticas de governo e buscando evitar as classificações medonhas que limitam a capacidade negocial, enfrentando as dificuldades impostas pelas políticas de governo. Aguarda-se que as vantagens estratégicas construídas em anos de relações equilibradas, baseadas num sincretismo político, pelos setores produtivos competentes, sejam mantidas pela omissão do Estado em determinar posturas ideológicas quando tantas novas oportunidades são estabelecidas no cenário internacional.
Leonardo Arquimimo de Carvalho é pesquisador da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Direito GV).