“Sei que, em razão de meu voto e de minha conhecida posição em defesa dos direitos das minorias serei inevitavelmente incluído no índex mantido pelos cultores da intolerância.” Assim o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Celso de Mello, iniciou a leitura das 155 páginas do voto em que mencionou da obra da escritora Simone de Beauvoir, ícone do feminismo, à fala da ministra Damares Alves de que “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, de reportagens sobre agressões contra a comunidade LGBT ao direito da busca da felicidade, para enfim enquadrar como crime a homofobia e a transfobia.
Considerado histórico pelos colegas, o voto de 19 tópicos foi lido pacientemente pelo decano – o ministro há mais tempo no cargo – ao longo de duas sessões plenárias do Supremo, totalizando cerca de 6 horas e 30 minutos de duração.
São raros os processos no plenário do STF sob a relatoria de Celso de Mello. Por ser o relator, porém, coube a ele abrir o julgamento com a leitura do voto na ação em que o PPS aponta omissão do Congresso Nacional no enfrentamento da homofobia. Se não estivesse nessa posição, o decano teria sido o penúltimo a se posicionar, conforme determinação do regimento.
Celso de Mello tem uma forma de trabalho muito peculiar: a Coca-Cola o ajuda a varrer madrugadas estudando casos e elaborando decisões, ao som de música clássica e corais sacros. Depois, deixa na mesa das assessoras pilhas de livros e referências – e costuma usar marcador de texto para destacar trechos de seus votos (a versão impressa vem com partes grifadas em itálico, negrito e até sublinhadas).
Para os colegas do ministro, a extensa leitura do voto sobre a criminalização da homofobia reafirmou o papel institucional do STF de defender minorias e lidar com um tema tão urgente quanto delicado, mesmo com potencial para contrariar o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional (a bancada evangélica pressionou Toffoli para que o tema não fosse pautado).
Além disso, elevou a discussão a outro patamar, sensibilizando colegas para aderir à tese (ao menos um ministro definiu o voto após ouvir o decano, segundo o Estado apurou). Por fim, criou um “custo argumentativo” para quem quiser discordar.
“É claro que, do ponto de vista formal, não existe uma hierarquia entre os votos dos ministros, o que vale é a maioria. Mas esse voto, por vir do decano, com argumentos tão fortes, se tornou a bússola do Supremo nesse caso”, avaliou Thiago Amparo, especialista em discriminação e diversidade da FGV Direito São Paulo. “Para você ter uma divergência, ela tem de ser tão bem fundamentada quanto o voto do ministro Celso de Mello.”
O decano foi acompanhado pelos outros três ministros que se posicionaram no julgamento até agora: Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. O trio utilizou, ao todo, três horas e quinze minutos para a leitura de seus votos.
O voto de mais de seis horas de Celso de Mello também reacendeu dentro da Corte o debate em torno da duração das sessões do tribunal – e da produtividade do plenário. Conforme tese de doutorado do economista Felipe de Mendonça Lopes, os ministros do STF passaram a escrever votos maiores desde que as sessões começaram a ser transmitidas ao vivo pela televisão, em 2002.
Barroso já defendeu um tempo máximo de 20 minutos para os votos dos relatores. Marco Aurélio, Toffoli e Luiz Fux também já se manifestaram nesse sentido. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.