Vinte e quatro ataques contra indígenas Guarani Kaiowá foram registrados entre os anos 2000 e 2016 na região sul de Mato Grosso do Sul. Nove indígenas morreram em decorrência direta dos confrontos e dois desapareceram. Esses números, e “uma série de características comuns entre os fatos que neles desencadeiam”, levaram a força-tarefa Avá Guarani, do Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul, a solicitar ao Núcleo de Direitos Humanos da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), em parceria com a Cardozo Low School, faculdade de direito da Universidade Yeshiva (EUA), a elaboração de parecer analisando a possibilidade de enquadramento legal dos ataques na figura legal de crime contra a humanidade.
Segundo a Procuradoria, “o estudo lançou olhar sobre as evidências disponíveis dos 24 ataques armados contra as comunidades Guarani e Kaiowá e concluiu que não se tratam de fatos criminosos isolados, mas interligados entre si e que assim devem ser tratados pelo Estado Brasileiro”.
A Procuradoria destaca características que “permitem afirmar que os ataques se qualificam juridicamente como crimes contra a humanidade”: a motivação (todos visam à expulsão forçada dos índios das fazendas que incidem sobre terras reconhecidas como indígenas e “retomadas” pelas comunidades afetadas); a autoria (os autores intelectuais e, às vezes, diretos dos crimes são os donos das fazendas ocupadas e seus vigilantes com participação, muitas vezes, de políticos locais); o elemento discriminatório (se não é o motivo preponderante dos ataques, é um importante facilitador e encorajador dos ataques, na medida em que os perpetradores percebem suas vítimas – “índios” – como seres humanos inferiores e não merecedores de respeito).
“Apesar de os diversos ataques não serem perpetrados pelos mesmos indivíduos, eles integram um mesmo grupo que age em função de uma mesma política: a expulsão dos índios de suas fazendas num contexto mais amplo de demarcação de terras que afeta os fazendeiros da região”, afirma o Ministério Público Federal em Mato Grosso do Sul.
Segundo a Procuradoria, “o envolvimento de sindicatos rurais ou cooperativas nestes incidentes é bastante frequente, o que demonstra que os ataques são parte, mesmo que de forma tácita, da política de um grupo de pessoas que, mesmo não conhecendo umas às outras, são unidas por um mesmo propósito, um mesmo ânimo, um mesmo interesse e acabam agindo todos da mesma forma”.
Em praticamente todos os casos, o MPF denunciou os envolvidos com base no artigo 288, do Código Penal, crime de associação criminosa.
O parecer assinala que “os ataques são ultrajantes e humilhantes, pois acontecem de surpresa, contra população desarmada, composta de crianças e idosos que têm que sair correndo pelos campos e matos para se esconder dos tiros, sem poder carregar os seus pertences que, não raro, são destruídos e queimados”.
“Muitas vezes, são espancados, carregados à força em carrocerias de caminhões e jogados em qualquer lugar em condição muito pior que gado. A violação de sua dignidade enquanto pessoas e povo é absoluta.”
Defesa à propriedade
O estudo lembra que, “mesmo que os proprietários rurais tivessem justa razão para expulsar os indígenas de suas fazendas, ainda assim os ataques não se justificariam, pois configuram exercício arbitrário das próprias razões (artigo 345 do Código Penal)”.
“Mas vale destacar que, no caso de Mato Grosso do Sul, todas as terras em que houve ataques são reconhecidas como terras indígenas e, portanto, sobre elas pelo menos paira a discussão sobre os títulos de propriedade desses fazendeiros que, conforme a Constituição da República, são nulos e sem efeito.”
O parecer enfatiza que existem características suficientes para qualificar os crimes como um “ataque generalizado e sistemático, cometido contra a população civil, por um grupo de determinados atos específicos, que atua com o conhecimento de ações passadas, ou seja, são parte de um plano de ação determinado e previamente estabelecido, com fundamento discriminatório e envolvem atos desumanos, em sua natureza e caráter, que causam grave sofrimento ao corpo ou a saúde mental ou física das vítimas”.
“Ou seja, esses ataques qualificam-se como crimes contra a humanidade, nos termos do artigo 71 do Estatuto de Roma e de acordo com vasta jurisprudência internacional analisada.”
Caracterização
Não é necessário que exista o tipo penal específico do crime contra a humanidade na legislação interna para que esses crimes sejam julgados e punidos, como tais, pelos juízes brasileiros, sustenta a Procuradoria.
“Crimes contra a humanidade são crimes internacionais que os Estados têm o dever de punir, mesmo que não tenham ratificado o Estatuto de Roma, já que se tratam de normas de jus cogens (normas permanentes e imperativas do direito internacional) e costume internacional. Além disso, como preconiza a Corte Interamericana de Direitos Humanos, trata-se de uma qualificação jurídica de certas condutas criminosas cometidas em determinado contexto, condutas essas que, na maioria das vezes, já está tipificada internamente.”
Em muitos casos, o Ministério Público Federal ofereceu denúncia e enquadrou os crimes dentro da tipificação penal, “já que os ataques foram resultado de uma série de condutas já criminalizadas, homicídio, lesão corporal gravíssima, sequestro, constrangimento ilegal, ameaça, ocultação de cadáver, dano qualificado, racismo, cárcere privado, entre outras”.
O parecer não identificou nenhum óbice a que esses casos sejam analisados conjuntamente e declarados como crimes contra a humanidade, caso em que se tornam imprescritíveis e, caso haja omissão ou incapacidade do sistema de justiça brasileiro, tornam-se elegíveis à submissão à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, uma vez que o Brasil ratificou o Estatuto de Roma.
Responsabilização penal
O Ministério Público Federal em Dourados, Naviraí e Ponta Porã, realizou investigação criminal em todos os casos analisados neste estudo e, até agora, ofereceu denúncia criminal em onze deles. Em muitos casos, o MPF não ofereceu denúncia porque os investigadores não conseguiram identificar os autores dos crimes.
Em alguns casos, a Justiça Federal decretou prisão preventiva ou temporária dos acusados. “Mas até hoje nenhum acusado cumpriu pena”, diz a Procuradoria.
Apenas uma sentença foi dada em primeiro grau, absolvendo o acusado, da qual o MPF recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3.ª Região. Os demais processos aguardam decisão.