No primeiro dia de depoimentos na CPI da Covid, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta afirmou que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contrariou orientações do Ministério da Saúde baseadas na ciência para o combate à pandemia do coronavírus.
Em depoimento de mais de sete horas dado nesta terça (4) na comissão, Mandetta também avaliou que o mandatário adotou discurso negacionista que pode ter contribuído para espalhar mais rapidamente a Covid-19.
O ex-ministro, demitido por Bolsonaro em 16 de abril de 2020, contou que chegou a escrever uma carta ao presidente em defesa do isolamento, que foi entregue em uma reunião com outros ministros no Palácio da Alvorada. “Era muito constrangedor para um ministro da Saúde explicar que o ministro da Saúde estava indo por um caminho e o presidente por outro”, disse.
No documento obtido pela reportagem, com a data de 28 de março do ano passado, Mandetta “recomenda expressamente” ao presidente que reveja o posicionamento adotado, acompanhando as recomendações do Ministério da Saúde, “uma vez que a adoção de medidas em sentido contrário poderá gerar colapso do sistema de saúde e gravíssimas consequências à saúde da população”.
As declarações do ex-auxiliar foram consideradas “relevantes” e graves pelo relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), e servirá para que ele verifique indícios de cometimento de crimes por parte de Bolsonaro.
Filiado ao DEM, Mandetta é cotado para a disputa ao Planalto em 2022 ele foi um dos seis presidenciáveis que assinaram manifesto pela democracia em 31 de março, ao lado de Ciro Gomes (PDT), Eduardo Leite (PSDB), João Amoêdo (Novo), João Doria (PSDB) e Luciano Huck (sem partido).
A intenção dos senadores ao interrogar Mandetta foi traçar uma linha do tempo já que ele chefiou a pasta logo no início da pandemia e verificar quais foram as interferências de Bolsonaro nas medidas para enfrentar o vírus.
Uma das linhas de investigação de parlamentares de oposição no colegiado é verificar se o presidente agiu deliberadamente para propagar o vírus na expectativa de que o país atingisse imunidade de rebanho, quando cerca de 70% da população já teria sido infectada pelo vírus. Assim poderia não ser necessário, por exemplo, comprar vacinas.
Mandetta disse ter a “impressão” de que o governo buscava a imunidade de rebanho como estratégia para vencer a pandemia.
“A impressão que eu tenho era que era alguma coisa nesse sentido, o principal convencimento, mas eu não posso afirmar, tem que perguntar a quem de direito”, afirmou o ex-ministro, que disse sempre ter se balizado pela ciência.
Segundo Mandetta, Bolsonaro foi alertado que no início da propagação do vírus, entre março e abril, o ideal era que se fizesse o isolamento social, mas ainda assim decidiu atacar a medida.
“Todas as recomendações as fiz com base na ciência, a vida e a proteção. Eu as fiz nos conselhos de ministros e diretamente ao presidente.”
O ex-ministro também afirmou que não partiu do Ministério da Saúde a orientação para a produção de cloroquina pelo Exército para o combate à Covid. Segundo ele, durante sua gestão, havia quantidade suficiente do medicamento pela Fiocruz para aquilo que lhe convém, como o tratamento da malária.
Questionado sobre a relação com o presidente, Mandetta disse que nunca teve discussões ríspidas com Bolsonaro, mas afirmou que sempre explicava a ele quais seriam as medidas indicadas pelas autoridades de Saúde para o enfrentamento da pandemia.
“O presidente, no mais das vezes, ele compreendia, ele falava: ‘Então, vamos, vamos… Dê seguimento!’, porque você não pode ser ministro sem relatar. Eu achava que eu estava fazendo um bom trabalho, inclusive, mas passavam-se dois, três dias, e ele voltava para aquela situação de quem não havia, talvez, compreendido, acreditado, apostado naquela via”, disse.
“Me lembro do presidente sempre questionar a questão ligada à cloroquina, como a válvula de tratamento precoce, embora sem eficácia comprovada. Falava também do confinamento vertical”, completou.
“Ele tinha um assessoramento paralelo”, afirmou Mandetta, sem definir quem assessorava o presidente.
O ex-ministro relatou que foi chamado a um gabinete no Palácio do Planalto, onde apresentaram uma sugestão de decreto para alterar a bula da cloroquina e incluir entre suas recomendações o uso para o tratamento da Covid-19.
O ex-ministro já havia revelado no ano passado a tentativa do governo de alterar a bula do medicamento. Nesta terça, ele usou o exemplo para mostrar que havia outras pessoas aconselhando Bolsonaro sobre a pandemia.
Mandetta também contou que o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, participava de reuniões para tratar das medidas de combate ao coronavírus.
Senadores governistas adotaram estratégia para tentar apontar que o ex-auxiliar de Bolsonaro havia dado recomendação “equivocada” à população.
Nessa linha, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) questionou o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta sobre sua orientação inicial de evitar buscar hospitais nos primeiros sintomas da Covid-19 e se ele receitou, em março do ano passado, “chá, canja de galinha e reza contra o novo coronavírus”.
Mandetta então apontou que a pergunta lida pelo senador tinha sido elaborada pelo ministro Fábio Faria (Comunicações), que encaminhou por engano ao ex-ministro do governo Jair Bolsonaro.
“Senador Ciro Nogueira, ontem eu recebi essa pergunta, exatamente nessa íntegra, do ministro Fabio Faria, que ele inadvertidamente mandou para mim a pergunta. Quando eu ia responder, ele apagou a mensagem. Então vou responder para o senhor, mas também para o meu amigo, que foi parlamentar comigo, ministro Fábio Faria”, afirmou o ex-ministro.
Mandetta rebateu dizendo que se trata de uma “guerra de narrativa” as acusações de bolsonaristas de que ele teria recomendado que as pessoas ficassem em casa, mesmo após apresentarem sintomas da doença.
Renan afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que considera “graves” os fatos descritos por Mandetta no depoimento.
O depoimento mostrou que houve aconselhamento paralelo na Covid, adoção da cloroquina ao arrepio do Ministério [da Saúde], participação de Carlos Bolsonaro [vereador do Rio e filho do presidente] em reuniões (por quê?) e alerta sobre 180 mil mortes”, disse o relator da CPI.
Ele segue: “Bolsonaro divergiu das orientações científicas, no isolamento e na cloroquina. Foi um depoimento importante na minha opinião para clarear exatamente o que ocorreu naquele momento inicial da pandemia”.
Durante a oitiva, Mandetta disse que pediu a um infectologista Julio Croda um estudo sobre a projeção do coronavírus e o estudo apontou que haveria 180 mil mortes até 31 de dezembro do ano passado.
Estavam marcados ainda para esta semana os depoimentos dos ex-ministros Nelson Teich e Eduardo Pazuello. O general, porém, alegou que esteve em contato com dois coronéis infectados com o coronavírus e por isso não poderia comparecer na comissão.
Na tarde desta terça, a presidência da CPI confirmou o adiamento do depoimento de Pazuello, inicialmente marcado para esta quarta-feira (5) e agora previsto para o próximo dia 19.
Após o fim da oitiva, em entrevista coletiva, Renan disse que a remarcação da oitiva do general representa “perda e ganho”.
“Perda porque só vamos ouvi-lo no dia 19. E ganho porque parece que vai haver uma conversão. Ele quer depor remotamente, agora para evitar aglomeração, ironizou o emedebista.
O vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), disse que apresentou pedido de convocação do ministro Paulo Guedes (Economia), e que espera que ele seja aprovado.
Durante o depoimento desta terça, Mandetta afirmou que o ministro da Economia ignorava alertas da pasta.
“Um desonesto intelectualmente, uma coisa pequena, um homem pequeno para estar onde está”, disse Mandetta.
“Diferentemente do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Este, sim, ligava, perguntava, mandava informações que captava no mercado, extremamente atencioso com coisas de economia e impacto nas coisas públicas, ajudou muito. O desse da Economia não ajudou nada. Pelo contrário, falava assim: ‘Já mandei o dinheiro, agora se virem lá e vamos tocar a economia’. Vamos tocar a economia talvez tenha sido uma das vozes que tenha influenciado o presidente”, afirmou.
O vice-presidente ainda avaliou que o depoimento de Mandetta indica que houve intenção do governo em alguns erros na pandemia, mas que é cedo para afirmar isso.
“O depoimento do ministro aponta que se organizou uma estratégia deliberada para imunizar a sociedade brasileira a partir da infecção pelo vírus. Aponta, mas ainda é muito cedo para chegarmos a essa conclusão. Mas temos que avançar em outros depoimentos que virão a ter”, disse Randolfe.