Um quarto dos deputados federais é servidor público e atua hoje como a maior força de pressão no Congresso Nacional. Antes dispersa e focada em demandas pontuais, essa bancada se uniu e ganhou visibilidade durante a votação da reforma da Previdência ao reagir à ofensiva do governo, que dizia atacar os privilégios do funcionalismo.

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É a atuação desse e de outros grupos de interesse no Congresso que o jornal O Estado de São Paulo passa a publicar a partir deste domingo, 22. A reportagem ouviu centenas de parlamentares, assessores e representantes dos quatro mais poderosos lobbies do Parlamento (os outros três serão apresentados nas próximas semanas). Esses grupos têm 289 deputados ou 32 votos a mais do que a maioria absoluta (257) da Casa.

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Fortalecido, o grupo ligado aos servidores públicos trabalha para estimular candidatos que patrocinem a agenda do funcionalismo com o objetivo de manter a influência sobre o Legislativo e impedir medidas de ajuste fiscal que são esperadas para o próximo governo e que afetarão as categorias. “É o lobby mais poderoso que tem no Brasil, sem nenhum pudor de defender privilégios”, diz o relator da reforma da Previdência, deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), que viu a proposta ser engavetada diante da pressão do funcionalismo.

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O Broadcast, serviço de notícias em tempo real do Grupo Estado, fez um mapeamento inédito dessa bancada. Ela é pouco conhecida e age sem alarde, mas tem expandido seu alcance com sucesso, barrando projetos que vão contra seus interesses e aprovando propostas que beneficiam o funcionalismo. Dos 513 deputados, 132 são servidores (25,7% do total). Eles estão espalhados em partidos de diferentes campos ideológicos – do PT ao PSDB, passando por PSOL, MDB, DEM, entre outros – e não têm bandeira única.

Mesmo entre aqueles que não são servidores, a atuação em defesa das categorias é ampla. Seis em cada dez parlamentares da Câmara já intercederam pelas categorias. Ao todo, 304 deputados que já apresentaram propostas ou requerimentos que favorecem os funcionários públicos, na maior parte das vezes em projetos que elevam salários ou desoneram as carreiras de tributos. Entre os deputados servidores, 72% já atuaram pró-funcionalismo. Segundo o IBGE, são 11,5 milhões de empregados no setor público, 5,5% da população.

Eficácia. A quantidade de entidades dificulta a tentativa do governo de se blindar contra a pressão. No Executivo, são 267 sindicatos e associações com as quais precisa negociar. É por isso que a eficácia de atuação é maior do que a de outras bancadas mais barulhentas e com grande repercussão em redes sociais.

Seu poder de fogo foi decisivo para enterrar não só a reforma da Previdência, mas também medidas consideradas pela área econômica como cruciais para o ajuste, como o adiamento do reajuste de servidores e a reestruturação das carreiras, proposta que limitaria o salário inicial da maior parte das categorias a R$ 5 mil. Hoje, as dez carreiras mais bem remuneradas têm salários iniciais a partir de R$ 20.109,56, e ganham até R$ 29.604,70.

Mesmo com a pressão contrária, o grupo também tem conseguido adiar o fim dos chamados “penduricalhos”, benefícios como auxílio-moradia que muitas vezes fazem os salários superarem o teto do funcionalismo, hoje em R$ 33.763,00.

Mais recentemente, barrou a tentativa de proibir aumentos salariais em 2019, que será o sexto ano com gastos maiores que as receitas, e garantiu caminho aberto para brigar por reajustes no primeiro ano do mandato do próximo presidente. A força do grupo ficou exposta na votação no plenário. Pouco antes de seu início, a liderança o MDB, partido do presidente Michel Temer, orientou o voto a favor do projeto. Diante da resistência da bancada, a liderança voltou atrás e passou a aconselhar o voto contrário ao congelamento.

Na área econômica do governo, há uma preocupação com essa força de mobilização, porque ela tem desequilibrado as negociações das medidas fiscais no Congresso. Os tentáculos da bancada também estão no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Ministério Público. No fim de 2017 e às vésperas do recesso judiciário, o ministro do STF Ricardo Lewandowski deu liminar suspendendo o adiamento dos reajustes proposto pelo governo para equilibrar suas contas. A decisão teve apoio da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e deixou o governo sem margem para recorrer a tempo de evitar os aumentos salariais.

Frentes. No Congresso, existem formalmente a Frente Parlamentar Mista em Defesa do Serviço Público, que reúne 196 deputados, e a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Servidores do Poder Judiciário, da União e do Ministério Público da União, com 218 deputados. O deputado Domingos Sávio (PSDB-MG), que coordena a Frejusmpu, diz que ajuda os servidores em causas que ele acha justas. Sávio admite, porém, que há “abusos” na mobilização”.

Reserva de mercado

Categorias poderosas de servidores emplacam demandas específicas para suas áreas. Os auditores da Receita, por exemplo, conseguiram a aprovação na Câmara do pagamento de bônus de eficiência. Outros grupos defenderam, com sucesso, que seus cargos não podem ser exercidos por outra carreira. “Grupo de elite” do funcionalismo, com ramificações no Judiciário e no Ministério Público, reúne 200 mil servidores.

A bancada do funcionalismo age como um trator no Congresso. Não enfrenta forte resistência e tem penetração até em partidos da base do presidente Michel Temer. André Moura (PSC-SE), líder do governo no Congresso, está na lista dos três deputados mais atuantes em favor dos servidores, ao lado de Rôney Nehmer (PP-DF) e Rogério Rosso (PSD-DF), segundo avaliação de fontes do governo.

Nehmer disse que atua em defesa do funcionalismo “com muito orgulho”. “Nosso gabinete é o gabinete do serviço público. A reportagem tentou contato com Moura, mas não obteve retorno.

A mecânica de mobilização se desenvolve por meio de grandes e pequenas frentes formadas pelos servidores, que frequentam os gabinetes de parlamentares e comparecem ao plenário em momentos cruciais para votações de seu interesse. Eles operaram nos bastidores para barrar algo que os prejudique, inclusive propostas que nem sequer foram apresentadas. É o caso do projeto de reestruturação das carreiras, que estacionou na Casa Civil depois de anunciado pela área econômica como prioridade para conter gastos com salários.

As investidas vão além de demandas salariais. Categorias poderosas emplacaram remunerações extras, como bônus de eficiência (para auditores da Receita) e honorários de sucumbência (para advogados da AGU e procuradores da Fazenda Nacional), e jogam duro. Em fevereiro, a Receita convocou entrevista para dizer que, sem a regulamentação do bônus dos auditores, as autuações do Fisco cairiam, prejudicando a arrecadação.

Alguns servidores conseguiram aprovar que seus cargos não podem ser exercidos por outra carreira. A avaliação da área econômica é que a “exclusividade” cria reserva de mercado que deixa o governo refém. Têm carreiras privativas auditores-fiscais da Receita, peritos médicos do INSS e auditores do Trabalho.

Escala

Há uma escala de influência entre as carreiras. As mais poderosas reúnem membros do Judiciário, do Ministério Público e auditores da Receita no Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), que reúne 200 mil servidores. “Conseguimos apoio importante na base do governo”, diz o presidente do Fonacate, Rudinei Marques. O deputado Leonardo Quintão (MDB-MG), reconhece que a pressão aumentou nos últimos anos e que a presença dos servidores na Câmara é constante. Ele mesmo adotou a causa dos auditores da Receita. “É bom para fazer amigos.”

‘Governo Temer subestimou força’

A estratégia traçada pelo governo para tentar aprovar a reforma da Previdência foi um divisor de águas entre a atuação isolada das categorias e a força de coalizão que se formou. “Talvez o governo tenha subestimado essa bancada”, diz o deputado Rogério Rosso (PSD-DF), um dos principais líderes pró-servidores na Câmara. Para ele, a campanha publicitária que atacava os “privilégios” do funcionalismo foi tão “injusta e cruel” que uniu os parlamentares e entidades de servidores espalhadas pelo Brasil.

A proposta de reforma do governo era instituir uma idade mínima para aposentadoria, de 62 anos para mulheres e 65 anos para homens. Não haveria mais benefício por tempo de contribuição. Mas o trecho que virou foco de embate foi o bloco de regras para servidores públicos, que hoje têm condições mais favoráveis do que o restante da população para se aposentar.

Enquanto os trabalhadores privados se aposentam ganhando no máximo R$ 5.645,80 (teto do INSS), um grupo de funcionários públicos que ingressaram até 2003 ainda pode levar para a aposentadoria o último salário da carreira (até o teto de R$ 33,7 mil), mesmo que no início tenha contribuído sobre valores menores. É a chamada integralidade. Outro benefício é a garantia a aumentos iguais aos dos servidores ativos, a chamada paridade.

Unidade. O governo queria acabar com a integralidade e a paridade. Depois, propôs uma regra que exigia as idades mínimas finais de 62 e 65 anos para conceder o benefício, sem nenhum tipo de transição. Os servidores não aceitaram o que consideraram perda de direitos e se uniram para barrar a reforma.

“A pauta da Previdência reuniu grupos de servidores que atuavam separadamente no Congresso. As agências, os policiais, os servidores do TCU”, diz o presidente da Federação Nacional de Policiais Federais (Fenapef), Luis Antônio Boudens.

Alçado a negociador das regras para servidores na reforma da Previdência, Rosso chegou a gravar um vídeo dizendo que todo brasileiro tem pai, mãe, irmão, primo ou vizinho que é servidor. Um aviso da influência dessas categorias. O próprio governo já havia tentado mapear essa influência na busca pelos votos para aprovar a reforma. Uma tabela feita por técnicos do governo apontava 210 deputados com parentes servidores (um deles, Carlos Marun, agora é ministro).

O relator da reforma da Previdência, deputado Arthur Oliveira Maia (DEM-BA), fez pouco mais de 200 audiências ao longo das negociações da proposta – 180 delas com entidades do funcionalismo. “Nos debates da comissão especial, os servidores defendiam o mais pobre e no meu gabinete só defendiam o próprio salário. Era tudo jogo de cena.” As negociações viraram tema crucial para as carreiras, que articularam a criação da CPI cujo relatório final diz que não há déficit nas contas da Previdência.

Associações querem ‘deseleger’ quem traiu

A articulação política das principais categorias de servidores mira as eleições de outubro. Mesmo sem poderem pôr dinheiro diretamente na campanha dos candidatos preferidos, as entidades sindicais e associações ligadas ao funcionalismo público trabalham para garantir a eleição de políticos patrocinadores das suas propostas e aumentar o poder de pressão até 2022.

As lideranças dos servidores não escondem essa movimentação, e a expectativa é de que o Congresso que sairá das próximas eleições tenha uma participação ainda maior de apoiadores do funcionalismo. A pauta de combate à proposta de reforma da Previdência, que deve voltar à agenda no próximo governo, está fortalecendo a articulação numa ação preventiva.

O secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores do Serviço Público Federal (Condsef), Sérgio Ronaldo da Silva, reconhece que os servidores se articulam para repensar os votos da última eleição e “deseleger” quem votou contra os interesses do funcionalismo. “Faremos recomendação a todas as nossas bases que marquem cerrado todos os parlamentares que votaram a favor da terceirização, teto de gastos e votariam a favor da Previdência. Dizemos que está chegando a hora do acerto de contas com eles”, afirma.

Mentira

Há, no entanto, parlamentares que alegam não terem sentido o apoio prometido pelo funcionalismo. “Eles mentem muito. A classe toda diz que vai votar em você e nem vota. Uma classe diz que vai conseguir 20 mil votos para você e te dá dois mil”, afirma o deputado Leonardo Quintão (MDB-MG), ligado aos auditores da Receita Federal. Para o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), o procurador José Robalinho, o “governo exagera essa força do lobby”. “Se isso fosse verdade, não estava há cinco anos sem reajuste salarial. Não houve lobby que impedisse a reforma de 2003 (previdência pública).” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.